quinta-feira, 13 de abril de 2023

Extracto sobre Fernão Lopes em WIKIPÉDIA

 







Características gerais

Fernão Lopes no "Painel do Arcebispo", pertencente aos "Painéis de São Vicente, atribuídos a Nuno Gonçalves (séc. XV).

Fernão Lopes redimensiona o gênero cronístico ao limitar as narrativas tradicionais panegíricas. Devido à crise dos valores tradicionais, propiciados pela Revolução de Avis, Fernão Lopes afasta-se das formas tradicionais panegíricas do gênero cronístico, por entender que essas seriam insuficientes "para explicitar uma nova ordem distinta da senhorial vigente", abrindo espaço de autonomia da narrativa histórica através de metodologia em que pudesse chegar a uma "verdade nua". Enquanto cronista assumia uma posição de autoridade, de distanciamento e isenção, atributos alegadamente capazes de detectar e controlar as subjetividades do discurso (a mundanall afeiçom) e, assim, chegar à "verdade nua".[4] Estabeleceu ainda uma hierarquia de importância historiográfica para os factos, avaliando o que valia a pena ou não narrar e privilegiando a descrição daquilo que tornava a história mais ordenada e inteligível, evitando perder-se em minúcias e detalhes distrativos.[18] Porém, mais do que buscar a verdade — para isso dando grande importância ao testemunho documental — ele se colocava na posição de intérprete privilegiado dos acontecimentos, aquele que desfazia as contradições entre as fontes e esclarecia para a posteridade o verdadeiro sentido e propósito do encadeamento dos factos históricos, descartando como mentirosas, parciais ou fantasiosas as versões divergentes da sua.[18] Nas palavras de Lopes & Saraiva:

"Como Guarda-mor da Torre do Tombo, Fernão Lopes tinha ao seu alcance os arquivos do Estado, circunstância de que soube utilizar-se, transcrevendo, resumindo e aproveitando a correspondência diplomática, as disposições legais, os capítulos das Cortes, e outra documentação que enriqueceu ainda examinando fora da Torre do Tombo: os cartórios das igrejas e lápides de sepulturas. [...] O primeiro cronista português pode, assim, ser chamado também com justiça o primeiro, em data, dos historiadores portugueses, isto é, o primeiro que, não se limitando a compilar, vai investigar os factos nas suas fontes documentais e submete a tradição a uma análise crítica".[19]

Apesar de ter sido designado oficialmente para compor uma história portuguesa, sua historiografia não é apenas regiocêntrica. O autor, mesmo que utilize o rei como centro da história, demonstra na sua narrativa grande interesse pelo povo, colocando-o como um importante protagonista nas transformações sociais de Portugal, além de trabalhar de maneira inédita aspectos psicológicos, económicos e humanistas que influem nos agentes e nos rumos da História.[5][13][20][21] O grande espaço que concedeu ao povo nas suas crónicas, muitas vezes identificando-se com ele e considerando-o a expressão do mais autêntico espírito português,[19][21] reflete-se também no seu estilo, enraizando a sua escrita na expressão oral e no universo popular. Prestigiou o vernáculo quando a maioria dos textos eruditos era produzida em latim e foi um representante do saber popular, mas já no seu tempo um novo tipo de saber começava a surgir: de cunho humanista, universalista, classicizante, do qual Fernão Lopes foi um dos primeiros cultivadores em Portugal.[22][21]

Porém, ele próprio diz que nas suas páginas não se encontra a formosura das palavras, mas a nudez da verdade.[20] Apesar disso, a sua prosa direta, desembaraçada e cheia de charme, o seu magistral domínio de variadas técnicas narrativas, as suas originais maneiras de estabelecer significados por meios indiretos, a sua capacidade de evocar cenas complexas e movimentadas e de prender a atenção do leitor, a sua compreensão do drama humano, entre outras qualidades, tornam as suas crónicas as maiores obras-primas da literatura medieval portuguesa, que a despeito da distância dos séculos ainda hoje continuam a exercer fascínio sobre leigos e especialistas.[23][19][20] Para António José Saraiva, "a prosa de Fernão Lopes conserva o tom 'falado' dos romances de cavalaria, mas enriquecido com um vocabulário e imagens reveladores de um grande senso de concreto, e com os recursos da oratória clerical, tocada oportunamente por um arrepio de solenidade bíblica, como quando fala da 'boa e mansa oliveira portuguesa'. O tom em que fala é sempre repassado de emoção, que não exclui a ironia, como se verifica na extraordinária descrição do cerco de Lisboa. Os ditos populares, as anedotas e a majestade de tom adequado aos grandes momentos sucedem-se com perfeita naturalidade, sem deixar perceber o tecnicismo retórico da época, que aliás dominava perfeitamente. E uma poderosa voz patriarcal, ora trovejando de indignação, ora espraiando-se com solenidade, ora gracejando, mas sempre quente e de largo fôlego, parece desprender-se das suas palavras".[24]

Primeira página de uma cópia manuscrita das Crónicas de D. Pedro I e D. Fernando.

O seu compromisso primeiro era com a verdade, mas ele não pôde furtar-se, em certa medida, de cair no erro que apontou a outros. Dizia que os afetos mundanos (a "mundanall afeiçom", uma ampla categoria onde incluía as predisposições e condicionamentos psicológicos, sociais e políticos do homem) levavam os historiadores a deixar visões parciais e erróneas da História. Fernão Lopes assumiu a tarefa de remediar isso e a frequente confusão existente entre as variadas fontes, pretendendo deixar a versão verdadeira, isenta e definitiva dos factos, e sua obra tornou-se, com efeito, canónica. Contudo, o compromisso com a "verdade nua" teve de ser relativizado em vários momentos. Dominando o campo no seu tempo, Fernão Lopes criou um discurso hegemónico e comprometido com o sistema, do qual ele surge como um influente legitimador e quase como um juiz. Ele foi um alto oficial do Reino, e esperava-se dele que entretecesse a narrativa histórica com exaltações dos feitos da realeza, como era antigo costume, mas tais louvações, tradicionalmente longas e prolixas nas crónicas anteriores, na sua obra são muito económicas, considerando-as distrações retóricas alheias à tarefa do bom historiador, que segundo ele deve concentrar-se no essencial.[22][19][21]

Ele ainda reconhecia que essas louvações eram muitas vezes exageradas no conteúdo e não apenas na linguagem. Não se evadiu de apontar, por exemplo, as insuficiências do Mestre de Avis, a quem se atribuiu, um pouco por acaso, o governo da nação, embora em numerosas passagens a sua apreciação do rei seja simpática e até compassiva, entendendo-o como mais uma peça, sempre presa e limitada em vários sentidos, na grande engrenagem do Destino, como todos os outros homens.[7] Teresa Amado traz uma interpretação vívida da sua construção do personagem real e da sua visão do papel do historiador:

"As numerosas situações em que se revela a sua pusilanimidade, o seu calculismo, a sua falta de eficácia na guerra e de capacidade de decisão nas ocasiões de crise, a sua displicência mal disfarçada ante os pequenos, não se incluem na história dos 'grandes feitos' nem das 'grandes virtudes'. São marcos da construção duma personagem que se vai fazendo através da escrita inquieta de Fernão Lopes, e que inclui vários outros, a completar-lhe a verossimilhança realista, como a inteireza da amizade, a camaradagem afetuosa, a pertinácia perante os desaires, a prodigalidade na distribuição das mercês. O próprio discurso do narrador passa da admiração ao enternecimento, deste à ironia, ou à censura. Em 'grandes feitos' e 'grandes virtudes', é mesmo pouco abundante a figura que dá o título à crónica [refere-se à de D. João I], em relação à qual o cronista orientou toda a preocupação de verdade para a multiplicação das características psicológicas dum homem absolutamente mediano, às vezes quase medíocre, a que o texto consegue dar uma presença extremamente real. [...] D. João terá sido depois um bom rei, mas o herói da guerra é o Condestável, tal como o herói do levantamento popular é o povo de Lisboa. O Mestre de Avis percorre esse período agitado cumprindo as funções que lhe são confiadas, com alguma dignidade, bastante cuidado em não se arriscar em demasia, e sobretudo com o grande mérito de ter sabido escolher os seus auxiliares mais próximos, João das Regras e Nun'Álvares, nomeadamente. No entanto, se a grandeza não caracteriza a personagem de D. João I na Crónica, nenhuma outra é nela mais viva nem mais verdadeira, gozando de uma relação absolutamente privilegiada com o autor, que tanto absorve o sentimento popular pelo rei que era 'tam amado do povo', como o analisa com o seu sólido bom-senso e a sua lucidez plebeia".[7]

Há ainda passagens em que ele descreve o código de ética ideal dos cavaleiros e cortesãos, aproveitando para fazer uma crítica aos vícios da aristocracia, apontando sua vanglória, inveja, avareza e gula. A sua descrição da História era tingida adicionalmente, assim, de um claro posicionamento político e social e de um propósito moralizante.[22][19][21] Como observou Teresa Amado, o seu "fracasso" essencial em estabelecer uma narrativa "verdadeira" e a contradição existente entre a sua teoria e a sua prática, demonstra-se na comparação entre aquilo que os documentos podem efetivamente atestar sem dúvida e a narrativa que ele deixou: "Se selecionássemos os factos certificáveis, não teríamos a Crónica, mas uma curta lista de nomes, datas, parentescos, alguns acontecimentos públicos". Justamente porque ele foi um homem como os homens, sucumbe aos desvios inevitáveis provocados pela mundanall afeiçom, mesmo que insistisse repetidas vezes na sua própria isenção.[7]

Não obstante a parcialidade inescapável em todo historiador, da qual ele pretendeu — impossivelmente — estar livre, Fernão Lopes conseguiu, na sua obra, um controle muito maior sobre as variáveis do que seus precursores, revelando-se uma façanha historiográfica e um grande avanço tanto em termos de metodologia quanto de credibilidade.[22][19][20] Para Alessandra Magalhães, Fernão Lopes é testemunha "de um período de transição política e de afirmação da nacionalidade e sabe, como ninguém, trazer isto até os nossos dias e colocar na frente dos nossos olhos os acontecimentos que desencadearam inúmeras transformações sociais em Portugal e no mundo. [...] Não importa tanto se a palavra de Fernão Lopes é histórica ou literária, importa que permaneceu. Foi a partir dela, palavra, que vimos fundar-se a ideia de uma nacionalidade, de uma identidade coletiva 'verdadeiramente' portuguesa".[20] Para Teresa Amado, as suas crónicas "são atípicas tanto pela novidade que exibem face à evolução que as precede como pelo talento e pela inteligência e a sutileza da compreensão que não se reproduziram nos cronistas que se lhe seguiram".[25]

Método

Fernão Lopes entende que a afeição é inerente à condição humana, que escapa ao controle racional. Assim, considera que as paixões e certas influências e predisposições psicológicas e sociais do narrador modificam a narrativa, o que implicaria em uma dificuldade de se apreender a verdade. Daí, a necessidade de o cronista-historiador em controlar a mundanall afeiçom, a fim de garantir o espaço de autonomia do discurso histórico, separando os desejos e interesses particulares. Desta forma, compreende que os atributos do cronista devem ser a isenção e a autoridade.[22][15]

Mesmo inferindo que a mundanall afeiçom afeta a todos os homens, Fernão Lopes entende que esta muda de acordo com os grupos sociais em diferentes níveis de subjetividade. Assim, analisa a mundanall afeiçom em dois grupos: os da ordem senhorial, mais próximos ao rei; e os mais distantes da ordem senhorial e do rei. No primeiro grupo, ela se caracterizaria pelos valores tradicionais presos ao servilismo ao rei e ao modelo panegírico, conferindo uma parcialidade e um artificialismo que poderia trazer um falseamento da realidade. Já os indivíduos do segundo grupo (os mais afastados do rei), seriam os portadores da "nua verdade", pois a mundanall afeiçom destes corresponderia aos laços de afeição e paixões naturais do homem, portanto, desligada do artificialismo e cerimónias do servilismo. Contudo, Fernão Lopes compreende que o discurso precisaria de um tratamento adequado à verdade textual conferida pelo cronista devido à sua posição de autoridade, distanciamento e isenção.[22][4][15]

Assim, podemos dizer que Fernão Lopes enquanto cronista tinha uma preocupação de uma construção textual comprometida com a "verdade nua". Para isso, estabeleceu uma metodologia para a escrita da história em que controlava a subjetividade da mundanall afeiçom – através de sua autoridade, distanciamento e isenção – cerceando a retórica tradicional formulada no modelo encomiástico (discursos de enaltecimento do monarca) para então "ordenar as estórias" conservando o espaço de autonomia do discurso histórico. Desta forma, Fernão Lopes, não só ordenava as "estórias" cronologicamente, mas também produzia uma hierarquia explicativa para os acontecimentos. Podemos entender que Fernão Lopes buscava o equilíbrio entre o discurso propriamente histórico e o discurso panegírico (escrita elogiosa). Assim, mesmo quando o cronista precisava se utilizar do discurso panegírico, ele o fazia apenas para cumprir uma necessidade formal (decoro), optando por um panegírico fraco e breve para não comprometer seu compromisso em mostrar a "verdade nua".[22][4]

O seu projeto de História foi inovador também porque reconheceu que a "versão oficial" sempre foi uma criação arbitrária, uma narrativa, uma ficção construída sobre factos. Ao admitir a incerteza como um elemento integral da tradição historiográfica — não por concordância, mas porque queria suprimí-la — e por que se dá o direito de questionar e corrigir essa tradição baseado em documentos, e mesmo de criticar os poderosos — na época uma grande ousadia — ele abre o caminho em Portugal para um método mais científico no tratamento da História. Amado acrescenta: "A parte mais importante da sua concepção do trabalho do historiador não é à que diz respeito à pesquisa prévia [...], por muito original para o tempo e indispensável que esta seja; é a prática, constante em toda a sua crónica, da História como uma escrita".[7]

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