segunda-feira, 4 de abril de 2022

In Internet-parte de um texto(autor?) sobre Bernardo Soares=Fernando Pessoa

... A narrativa do Livro do Desassossego não apresenta um enredo coerente nem um desfecho derradeiro. Esta é uma narrativa episódica e ramificada, de teor hipertextual (o leitor poderá aceder ao texto através de vários pontos e, a todo o momento, poderão ser estabelecidos elos associativos entre os fragmentos) que apresenta o sujeito enunciador como matriz de todas as ações ou personagens: “Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei” (Arquivo LdoD, A doçura de não ter família nem companhia: BNP/E3, 7-11). Contudo, Bernardo Soares apresenta-se por vezes como submisso a uma entidade superior: “Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre página reclusa, vivendo sílaba a sílaba a magia falsa, não do que escrevia, mas do que supunha que escrevia! Com que encantamento de bruxedo irónico me julguei poeta da minha prosa” (Arquivo Pessoa, Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito: 1689). Momentos como este, em que Soares se apercebe da sua condição ficcional, permitem entrever a existência de uma metalepse que percorre toda a obra. Deixam igualmente auscultar a voz de Fernando Pessoa ortónimo, que comunica através de uma máscara. De facto, tal como António Apolinário Lourenço afirmou, “nas páginas do Livro do Desassossego ecoam praticamente todas as vozes que habitaram Pessoa” (Lourenço, 2009: 63). Ao descrever esta personagem, será também importante ter em conta que o Livro do Desassossego não será apenas um texto em prosa poética, mas também um “drama em gente, em vez de em actos” (Arquivo Pessoa, Tábua Bibliográfica, 1928: 2700).

Apesar de não ser possível construir uma biografia densa acerca de Bernardo Soares – esta é uma “biografia sem factos”, tal como a própria personagem frisa – é possível identificar uma personagem dotada de vida. O “Sr. Soares” frequentava habitualmente uma “casa de pasto” e terá sido aí que conheceu Fernando Pessoa. Soares terá um “metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso” (Arquivo Pessoa, Prefácio: 2246). De acordo com o prefácio do Livro do Desassossego, escrito por Fernando Pessoa, Bernardo Soares era um homem que “aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado” (idem). A sua face era pálida e marcada por “aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito” (idem.). Soares conta-nos que a sua mãe faleceu quando tinha um ano de vida e seu pai suicidou-se quando tinha três (Arquivo Pessoa, Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração: 2172). Foi acolhido por umas tias na província, até que foi levado por um tio “para um escritório de Lisboa” (Arquivo LdoD, Penso, muitas vezes, em como eu seria: BNP/E3, 3-44r).
O mundo ficcional do Livro do Desassossego não depende de uma sequência de peripécias ou do recrudescer de um conflito, mas da permanente metamorfose do real. Influenciado por simbolistas, associado ao movimento futurista, inserido no modernismo, Pessoa acabaria por produzir uma estética singular, de que é exemplo o Livro do Desassossego. Esta é uma narrativa tecida de sensações e que tenta alcançar um plano onde, perante o desaparecimento de Deus, poderá residir a essência humana. À semelhança de um flâneur benjaminiano, Soares assiste, em contratempo, ao espetáculo frenético e enigmático da cidade. Enquanto deambula por ela, partilha, abandonado ao desencanto, as suas reações dispersas a um exterior urbano. Pessoa assistiu ao fim da monarquia, à subsequente turbulência política e, junto a Bernardo Soares, presenciou o romper da Primeira Guerra Mundial e o início de uma ditadura.
Tal como Pessoa, Soares escreve sobre uma subjetividade múltipla. O processo de escrita é absorvido por Soares que, ao longo do Livro do Desassossego, desenha vários percursos que retornam sempre a ele. Bernardo Soares é igualmente uma personagem com potencial de sobrevida. Inúmeras teses e artigos continuam a ser publicadas em torno desta personagem. Os seus passos pelas ruas de Lisboa são hoje reconstituídos mediante a aquisição de pacotes turísticos (Pessoa escreveu um livro intitulado Lisboa - O que o Turista Deve Ver). E um filme realizado por João Botelho, o Filme do Desassossego (2010), fez dele o protagonista. Um documentário sobre o seu livro foi exibido pela RTP em 2009, produção de João Osório, como parte da série Grandes Livros. Por sua vez, o escritor Mário Cláudio deu a esta figura o lugar de personagem central da novela Boa Noite, Senhor Soares (2008).
Referências
CRESPO, Ángel (1990). A vida plural de Fernando Pessoa. Venda Nova: Bertrand Editora.
LOURENÇO, António Apolinário (2009). Fernando Pessoa. Coordenação de Carlos Reis. Lisboa: Edições 70.
MADURO, Daniela Côrtes (2015). “Ser a página de um livro - Bernardo Soares como personagem e livro”. Revista de Estudos Literários. 5: 491-527.
PESSOA, Fernando ([1997] 2008). Arquivo Pessoa. Lisboa: Obra Aberta CRL, disponível em http://arquivopessoa.net/ (Arquivo Digital do Livro do Desassossego).
PESSOA, Fernando (2015). Livro do Desassossego. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, disponível em: Arquivo Digital do Livro do Desassossego.
REIS, Carlos e Ana Cristina M.LOPES. (1987). Dicionário de narratologia. Coimbra: Livraria Almedina.
SIMÕES, João Gaspar (1983). Fernando Pessoa: breve história da sua vida e da sua obra seguida de Fernando Pessoa perante Bernardo Soares. Lisboa: Difel.
ZENITH, Richard (2006). “Prefácio”, in Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Lisboa: Assírio e Alvim.
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