"Só na infância, e na infância com sorte, a maior parte dos homens pode ter uma ideia do que seria o mundo em variedade de real e capacidade de sonho se não tivéssemos de nos adscrever à tarefa de o tornarmos habitável antes de nos pormos a descobrir sua beleza. Fala-se muito do analfabetismo e ele é porventura um grande mal; mas não se repara em que há outros analfabetismos ainda mais graves: o de um especialista de determinada matéria que nada conhece do que os outros estudam ou o dos que vão morrer inconscientes do espectáculo em que Deus os jogou.
Espectáculo no qual deveriam colaborar, porque essa seria a mais verdadeira e a mais pura forma do culto a Deus, e em que não entram senão muito limitadamente. Um dos grandes males que, a par dos grandes benefícios, trouxe consigo o especialismo foi o de fazer supor a quase todos os homens que só são capazes de um determinado trabalho. Isto é, que nasceu cada um médico, engenheiro ou servente de obras; [...] essa crença ficou de uma forma dominante no que diz respeito às artes. Ninguém pensa que pintar, modelar, ou gravar seja património comum da natureza de homem; e que o sejam igualmente a poesia ou a dança: acha-se que são um dom, uma genialidade, e além de tudo raros. Olha-se o Renascimento italiano como uma época de monstros, quando na verdade cada um dos homens que nele mais admiramos tinha os mesmos recursos de natureza humana que nós temos. O que aconteceu é que devido a circunstâncias que não se repetiram na História, mas que está hoje em nosso poder fazer repetir, eles puderam ter a coragem de se libertar de limitações, de escrúpulos, de antolhos, e se lançaram à suprema aventura de ser o que eram."
- Agostinho da Silva, SÓ AJUSTAMENTOS [1962], IN "Textos e Ensaios Filosóficos", II, Âncora Editora, 1999, p. 133.
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