sábado, 21 de outubro de 2023

Extracto da vida de São Francisco de Assis, na Wikipédia.





Contexto histórico

Um século antes de Francisco nascer, a espiritualidade europeia estava principalmente concentrada nos mosteiros enclausurados, desenvolvendo-se de uma forma introvertida e contemplativa que tinha muito de pessimismo em relação ao mundo e ao ser humano. Os mosteiros europeus eram, também, os maiores centros de cultura erudita na Europa de então: em suas bibliotecas e através de suas oficinas de copistas, preservou-se boa parte do que hoje se conhece de literatura clássica, e seus membros muitas vezes alcançaram níveis altos e refinados de pensamento abstrato e teológico, com grande penetração psicológica. Os monges eram, pessoalmente, pobres, mas nada lhes faltava de sustento material, pois suas Ordens eram muitos ricas, recebendo doações da nobreza e do povo e possuindo grandes extensões de terra e muitos tesouros em suas igrejas. De qualquer modo, na percepção daquela época, uma vida de monge era o caminho mais garantido, na verdade praticamente o único, para a conquista do Paraíso, e era comum que leigos, depois de terem vivido a maior parte de suas vidas no desfrute do mundo, ao sentirem a morte se aproximar, deixassem suas famílias para ingressar em um mosteiro, num processo que veio a ser chamado de "piedade fugitiva", esperando que a conversão, mesmo de última hora, fosse suficiente para alcançar a recompensa eterna. Acompanhando esse modo de pensar, era uma crença corrente a de que o céu tinha uma população reduzida, e que ela era composta na maior parte de monges.[26][27]

No decorrer do século XII começou a se verificar uma mudança: a sociedade passou a demonstrar um crescente otimismo quanto às coisas espirituais, e parecia mais fácil à gente comum partilhar do Paraíso com os monges. Essa mudança se explica através de dois fatores principais — a concepção de Deus se tornou mais amorosa e benévola, e os doutores das faculdades de teologia, especialmente os proto-humanistas de Paris, elaboraram e divulgaram o conceito do Purgatório, que previa, para após a morte, uma estadia temporária num plano intermédio entre terra e céu onde as almas seriam purificadas de seus pecados veniais, possibilitando seu acesso à beatitude algum tempo depois. No encerramento do século, Hugo de Avalon veio reforçar esse otimismo dizendo que o céu não era um destino exclusivo para os monges e autoridades da Igreja, e que no Juízo Final todos seriam julgados de acordo com sua observância dos princípios do cristianismo, e não do monasticismo. Francisco nasceu nesse momento de abertura, e embora mantivesse em parte o modelo da ascese em renúncia pessoal do mundo, buscou a santificação de toda a família humana em comunhão e em íntimo contato com seus semelhantes numa pregação itinerante dentro dos centros urbanos, sem estar vinculado a nenhum núcleo religioso fixo no espaço e sem submeter-se à clausura nem às armadilhas da erudição.[26]

Num período em que o modelo feudal entrava em declínio e emergia a burguesia mercantil como grande força econômica, tentou ensinar, aos novos poderosos, a responsabilidade social e os perigos que trazia sua riqueza, e aos miseráveis as virtudes e possibilidades espirituais ocultas em sua condição desfavorecida e seu valor inalienável como filhos de Deus, mostrando a todos que a religião podia ser fonte de alegria e não causa de opressão, e apresentando novas alternativas de expressão para uma espiritualidade que estava num processo de transição, o qual se não fosse iluminado por seu exemplo de fraternidade e obediência estrita às instituições religiosas estabelecidas poderia resultar num beco sem saída ou na revolta cismática.[28][29] Como observou Susan McMichaels, deve-se entender a renovação franciscana da vida religiosa de seu tempo dentro de parâmetros limitados, já que a Igreja Católica, mesmo nessa fase de mudança, ainda era a principal força social da Europa, tinha autoridade sobre reis e imperadores, e qualquer movimento excessivamente heterodoxo facilmente era condenado como heresia e seus membros ficavam sujeitos a um destino de perseguição e morte.[30]

Wenzel HollarSão Francisco em retiro, século XVII. Universidade de Toronto
Giotto: Expulsão dos demônios de Arezzo, 1297-1299. Basílica de São Francisco de Assis, Assis

Por fim, ao estudar a biografia de um santo, a pesquisa moderna se depara constantemente com o problema de como encarar seus milagres e outros prodígios que se lhe atribuem. Roger Sorrell lembra que os relatos que envolvem o controle taumatúrgico das forças naturais e dos seres irracionais são frequentemente descartados hoje como fruto de alucinaçãofantasia ou superstição, mas essa postura impede uma apreciação correta do ethos ascético e místico, e é irrelevante para o contexto histórico. Esse ethos envolvia a crença de que o mundo poderia ter sua harmonia restaurada através de uma vida de acordo com o mandamento divino. O antigo asceta Santo Antônio do Deserto dizia que a Criação era um livro onde se podia ler as palavras de Deus, e essa opinião era comum entre vários outros místicos. Nesse sentido, se o asceta estava em harmonia com Deus, se tornava possível um diálogo efetivo e inteligível com todo o mundo criado, e a natureza aparentemente hostil e muda para o homem comum se tornava amistosa e responsiva para o místico em comunhão divina.[31]

Francisco de Assis se insere nessa longa linhagem de santos ascetas, taumaturgos e místicos; certamente estava familiarizado com as histórias dos santos antigos, pois a própria Assis dera nascimento a vários santos e mártires antes dele, e, leitor assíduo da Bíblia, em especial do Novo Testamento, devia também conhecer passagens que referem à integração entre as criaturas e o Criador, como na Epístola aos Romanos I:20:

"Porque as coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão criadas...", ou na Primeira Epístola a Timóteo IV:4-5: "Porque toda a criatura de Deus é boa, e não há nada que rejeitar, sendo recebida com ações de graças. Porque pela palavra de Deus e pela oração é santificada".[31]

Para o seu tempo, o milagroso era parte integrante da verdade corrente. Por outro lado, muitos dos fenômenos maravilhosos encontrados nas narrativas sobre a sua vida, se não eram explicáveis naquele tempo, poderiam sê-lo hoje, com a ressalva de que mesmo a ciência e a psicologia, por avançadas que estejam atualmente, ainda não são capazes de explicar todos os fenômenos naturais do mundo ou os da mente, e o problema permanece, pois, irresolvido.[31]

As fontes documentais primitivas e a historiografia moderna

Francisco deixou escritos, que apesar de poucos e sucintos são uma fonte de grande importância para o conhecimento de suas ideias e objetivos, mas ele não escreveu sua própria história e foi sempre muito avesso a relatar sua vida privada, tarefa que ficou para seus biógrafos. Diversos daqueles documentos são de autoria controvertida, e são-lhe atribuídos mais pela tradição do que por qualquer outro motivo, não havendo provas que os autentiquem. É o caso da famosa Epistola ad populorum rectores (Carta aos governantes dos povos) e o da Epistola ad fratrem Antonium (Carta ao Irmão Antônio de Pádua). O seu conteúdo, no contexto do pensamento franciscano mais reconhecido, é pouco congruente. A primeira é uma admonição apocalíptica, mas se a preparação para o Juízo Final era uma preocupação para Francisco, não há evidência de que ele o considerasse um evento iminente, como o texto da carta sugere. Quanto à segunda, a aprovação que faz do estudo teológico erudito não parece concordar com a marcada inclinação de Francisco para a simplicidade. Seja como for, sua autenticidade é um problema ainda em aberto. A Regula (Regra primitiva) da Ordem, que escreveu de próprio punho entre 1209 e 1210, teve seu original perdido, e a reconstituição que foi feita mais tarde é, assim, incerta, mas crê-se que trechos dela sobrevivam em pelo menos três fontes secundárias, o códice fragmentário da Catedral de Worcester, a Explicação da Regra escrita por Hugo de Digne entre 1245 e 1255, e a Vita secunda Sancti Francisci, de Tomás de Celano, além de ter sido a fonte básica para a elaboração da Regula non bullata (Regra não bulada) e da Regula bullata (Regra bulada). Também autógrafa é a Benedictio fratri Leoni data (Bênção ao irmão Leo), que está preservada na Basílica de Assis. Seu Testamentum (Testamento) deve ser autêntico, ainda que ditado a outrem, e nele ele faz uma apologia do trabalho cotidiano e manual, expressando o desejo de que todos os Irmãos trabalhassem como ele de forma honesta. Também parece estar fora de dúvida sua autoria do Cantico di frate Sole (Cântico do irmão Sol), que é uma bela demonstração de sua veia mística e também de seu talento poético, mas outros poemas que ele, segundo a tradição, escreveu em italianolatim e francês, foram perdidos.[32][33][34]

Suas Admoestações, uma coleção de 28 textos curtos, podem ter sido escritas a partir de suas próprias palavras, mas o texto em si muito provavelmente não é de sua lavra. O fragmento Audite, poverelle (Ouvi, pobrezinhas), escrito para as Clarissas, descoberto em 1976 em dois manuscritos do século XIV, parece ser autêntico, do mesmo modo que a Forma vivendi Sanctae Clarae data (Forma de vida para Santa Clara) e a Ultima voluntas Sanctae Clarae scripta (Última vontade para Santa Clara), que sobreviveram em cópias de Santa Clara inclusas em sua própria Regra. Também sobrevivem um punhado de cartas a destinatários diversos, orações e fragmentos vários, e embora sua autenticidade seja debatida e se encontrem registrados apenas em manuscritos posteriores, muitos desses textos são considerados originais.[33] A vastamente popular Oração de São Francisco, a que inicia com as palavras Senhor, fazei de mim um instrumento de vossa paz..., não é de sua autoria, tendo sido escrita em 1913 e publicada em um magazine francês anonimamente.[35]

Carta autografa de S. Francisco para o Irmão Leo
Giotto: A verificação dos estigmas de São Francisco após sua morte, 1297-1299. Basílica de São Francisco de Assis, Assis

A célebre Legenda maior Sancti Francisci (História de São Francisco, 1263), de São Boaventura, que sobreviveu em inúmeras cópias, não parece ser de muita utilidade. Apesar de ele a ter elaborado a partir de fontes de primeira mão, sua preocupação com a harmonização da comunidade franciscana e a ausência naquela época de métodos de referência científica fazem dela um relato excessivamente poético e fantasioso, quando não claramente parcial, da vida de Francisco. Se ela tem um lugar garantido na tradição piedosa e devocional, no estudo histórico acadêmico não sucede da mesma forma, e os peritos apontam nela uma série de contradições, a evidência de uma compilação seletiva de suas fontes e de um propósito de com ela criar uma imagem unificada e positiva da Ordem segundo a visão original de Francisco, numa época em que ela estava já agitada por dissidências internas e enriquecia a olhos vistos. Entretanto, essa Legenda se tornou canônica, já que em 1266 o Capítulo Geral da Ordem se reuniu e decidiu que os irmãos não deveriam ler nenhuma outra biografia que não essa, e determinou a destruição de todas as outras que se haviam escrito até então, o que causou a perda de muita documentação importante. No século XIV Bartolomeu de Pisa escreveu um novo relato biográfico, aprovado pelo Capítulo Geral em 1399 como sendo o mais veraz, mas esta obra é considerada pela crítica moderna literariamente medíocre e de pouco valor documental. Afortunadamente a partir do século XVII foram sendo encontradas cópias de outros documentos dados como perdidos, suprindo em parte a imensa lacuna deixada pela supressão de fontes antigas em 1266.[36]

Vita prima Sancti Francisci (Primeira biografia de São Francisco, 1228), de Celano, escrita a pedido do papa Gregório IX, foi resumida pelo autor em 1230 sob o nome de Legenda ad usum chori, mas apesar de ser uma obra de refinado estilo, ela padece também de parcialidade. Celano novamente foi chamado em 1244 para escrever uma versão ampliada da Vita prima, dando outras informações trazidas por frades que haviam conhecido bem a Francisco e integravam seu primeiro círculo de associados, como Rufino, Leo e Angelo, o que resultou na Vita secunda Sancti Francisci (1245). Esta nova versão foi concebida numa linha rigorista, sem enfatizar os milagres do santo e tentando oferecer uma visão de sua trajetória mais de acordo com a que ele mantivera em vida, de certa forma atendendo melhor ao critério de verdade histórica apreciado contemporaneamente. Mas a obra não teve especial aceitação na sua época, pois era grande o desejo de todos por narrações fantásticas e maravilhosas, de modo que mais uma vez Celano foi convocado ao trabalho, desta vez para escrever o Tractatus de Miraculis Sancti Francisci (Tratado sobre os Milagres de São Francisco), de 1253.[33][36][37]

Outras fontes importantes são a Legenda trium sociorum (História dos três companheiros, 1246), anônima, uma compilação de material heterogêneo; o Actus beati Francisci et sociorum ejus (Atos do beato Francisco e seus companheiros, c. 1331-1337), de Ugolino de Montegiorgio, podendo incluir material original do Irmão Leo; o breve épico Sacrum commercium beati Francisci cum domina Pauperate (A sacra aliança entre São Francisco e a Senhora Pobreza, c. 1260 - 1270?), que deriva de um tema caro a Francisco; a coleção informal de episódios da vida de Francisco conhecida como I Fioretti di San Francesco (Florilégio de São Francisco, c. 1340), uma reelaboração livre do Actus que se tornou muito popular; o Speculum perfectionis (Espelho de perfeição, 1318, duas versões), o mais copiado depois da Legenda maior; a Compilação de Assis (1310-1312, com sua variante a Legenda perusina), e por fim a Legenda antiqua (História antiga), quase certamente de autoria do Irmão Leo. Existem ainda algumas outras fontes primitivas, mas em sua maioria são derivações dessas já citadas.[36]

No final do século XIX, já dispondo de uma metodologia e de uma visão historiográfica mais científica e consistente, os estudiosos começaram um trabalho de revisão do material antigo disponível. O primeiro estudo nesses moldes foi publicado em 1894 pelo protestante Paul Sabatier, em sua Vida de São Francisco de Assis, e desde então eles se multiplicaram de forma abundante. No início do século XX toda a literatura biográfica e folclórica escrita em torno de Francisco nos séculos XIII e XIV que foi recuperada, foi compilada por eruditos franciscanos no Analecta Franciscana, de mais de 800 páginas, mas para os estudiosos modernos essas fontes primitivas, apesar de essenciais e incontornáveis, apresentam diversos problemas que as impedem de ser consideradas inteiramente fidedignas, principalmente pela incerteza sobre a datação da maioria delas, por suas contradições e imprecisões, por adornarem as passagens da sua vida com uma profusão de lendas maravilhosas cuja comprovação se faz muito difícil, e por muito frequentemente o retratarem apenas como um herói da fé, com escassa menção aos problemas que a Ordem enfrentava em sua morte e aos seus conflitos com a Igreja estabelecida, e colorindo seu caráter com apreciações carregadas de emocionalismo. Embora se acredite que não haja motivos importantes para se duvidar da pureza das intenções e da vida de Francisco, nem de sua importância para a história da religião Católica e para a devoção moderna, toda a substância dos relatos parece ser pouco objetiva.[38]

O legado de suas ideias e de seu exemplo de vida

A fama de santidade que granjeou em vida e perdura até os dias de hoje não decorreu de grandes manifestações de erudição religiosa, que jamais fez questão de possuir, e tampouco de seus milagres, que a tradição alega terem sido muitos e impressionantes, mas do seu exemplo de uma vida de completa dedicação ao próximo, dedicação que era animada por uma compreensão profunda, uma sinceridade espontânea, uma simplicidade autêntica em todas as coisas, qualidades banhadas de uma calorosa fraternidade, simpatia e caridade. Todos os seus primeiros biógrafos ressaltam esses aspectos de seu caráter, e por esses motivos sua figura é também admirada por muitos fora da esfera do Catolicismo.[32] Na visão de seus contemporâneos ele era o mais perfeito seguidor de Jesus Cristo, e sua presença em qualquer cidade era sempre um acontecimento, enquanto seus irmãos eram tidos na mais alta estima por muitos prelados importantes e autoridades civis. Para Jacques de Vitry, bispo de Acre, sua aparição foi o consolo de um século corrupto,[39] e na bula Mira circa nos de sua canonização foi descrito como aquele que entrou no céu "precedendo muitos dotados de ciência, ele que deliberadamente era sem ciência e sabiamente ignorante".[40]

A despeito das críticas a que ele é ocasionalmente submetido, que o acusam de obscurecer a figura do próprio Jesus,[41] e das dúvidas que às vezes surgem sobre sua sanidade mental em vista de seu caráter emocional arrebatado, suas oscilações entre extremos de intensa euforia quando falava de Deus e de profunda tristeza quando observava suas supostas fraquezas, sua imaginação exuberante e pelas constantes visões e revelações que alegava ter,[42] para Kenneth Wolf sua enorme importância histórica e espiritual se confirma na abundante literatura devocional e erudita que é continuamente produzida sobre ele nos tempos recentes, e assinala que mesmo os acadêmicos laicos, por mais distanciados que procurem se manter de uma análise emocional e adulatória de sua vida e obras, acabam com frequência por reconduzi-lo ao pedestal de onde o baixaram para seus estudos científicos.[41] 

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