Nunca Maria Gabriela Llansol explicitou tão bem as dificuldades que se colocam à aproximação da sua obra. Ela própria nos fala num "pacto de inconforto". Arranca do exemplo de uma frase: "Uma parte da minha vida ajustou-se ao pátio." E comenta-a assim: "Quando escrevi esta frase, eu estou a ver o pátio, mas quem não lê não sabe de quem é a vida que se ajustou ao espaço do pátio."
Notemos: primeiro, a passagem do passado ("escrevi") para o presente ("estou a ver"); segundo, a distinção entre aquele-que-lê-não-lê ("mas quem não lê não sabe) daquele que lê-e-sabe-o-que-é-ler.
E Maria Gabriela Llansol acrescenta: "Muitos dos que me leem têm dificuldade em ajustar-se ao pacto de leitura que os meus textos supõem: o de saberem quem está emancipado. E sabê-lo sem sombra de dúvida. Os meus textos supõem um pacto de inconforto." E um pouco mais adiante surge este dizer luminoso: "Devo reconhecer que o meu texto, ao deixar inseguro o sujeito que enuncia, se dirige de facto ao ansiar do coração, e o coloca na sombra da dúvida. E, se o coração persiste em ler, é, porque há nele um fulgor estético que o ilumina o próximo passo, e o faz apoiar no detalhe justo e irrecusável."
Permitam-me que volte a sublinhar alguns pontos. Primeiro, a passagem do "saber sem sobra de dúvida", expressão comum, que designa um saber de claridade absoluta, sem sombra, sem resto, sem réstia de noite, solar e diurno, pretendendo ser capaz de olhar o sol, e a morte, de frente, para um saber que viaja na sua própria sombra, que a aceita, que a trata por tu, que se abriga nela, que se coloca à sombra da sua sombra. Llansol nunca enfatiza o enigma: domestica-o sem o açaimar, torna-o doméstico: "o meu real é estar a descascar estas ervilhas e ouvir Bach" (note-se a insistência do concreto: "estas").
Segundo ponto: o texto deixa inseguro, mas quem? "O sujeito que enuncia." Isto é, não se trata apenas da insegurança do leitor face a um texto que o autor dominaria, mas da insegurança liminar daquele que escreve. Escrever não é mais do que este passar a insegurança de mão em mão. Ou, se preferirem, de coração em coração. Porque, se o leitor que eu sou continua a ler, mesmo quando o sentido vacila e a razão se desassossega, é porque, em mim, ou melhor, em nós, é o coração que persiste em ler. Donde, aquele que sabe ler com o coração. Mas Llansol acrescenta algo que corresponde precisamente ao que eu aqui mesmo tenho tentado fazer: a leitura-do-coração apoia-se no "detalhe justo e irrecusável".
Este aspeto é absolutamente fundamental: porque, como acontece com quase todos os grandes autores, o leitor pode pegar no último livro de Llansol e supor que se trata "do que já conhece" (ou do [que] se habitou a desconhecer). Só a leitura rasante ao texto é capaz de captar "o detalhe justo e irrecusável". Só a leitura encostada ao coração do texto, só a leitura clínica de uma respiração, desabitua e permite surpreender a diferença, ou melhor, a microscópica explosão de diferenças, ou melhor ainda, porque já nem sou eu quem o diz, mas um coração partilhado "o encontro inesperado do diverso". Donde “escrever é levar a leitura pelo seu caminho de modo que quem lê sobreviva ao seu encontro".
Barthes propôs um dia a distinção entre textos de "plasir" e textos de "jouissance". Os textos de "plasir" são uma arte de viver – situam-se na face interna do enigma da vida, percorrem-no frase a frase, como uma carícia, um afago animal antes do sono. Os textos de "jouissance" são, na sua verticalidade inexorável, um exercício de sobrevivência – suspendem-se, como um suicida no rebordo da janela, na face externa do enigma da vida, mas escrevem-se letra a letra, tropeçando na ilegibilidade destas letras, e por isso resistem à queda: o texto é "um espaço matinal de contra-sangue".
3. Devemos, portanto, dizer claramente que "Lisboaleipzig" é um texto de “jouissance", com os riscos inerentes para quem escreve e para quem lê. Porque a "jouissance" passa por um eclipse, uma rasura, uma síncope do sentido, um momento de autismo transcendental, que só a violência do texto pode ultrapassar. Neste livro podemos encontrar o relato de uma cena primitiva que é aquela, admirável, em que Maria Gabriela conduz a criança emudecida, Ad, até ao lugar do "texto sem fim" – "feito de sinais, gatafunhos, que escrevem, mutuamente, que as nossas presenças não nos fazem mal, nem medo". Esta cena repete a crise criativa de outra figura autobiograficamente fundamental: a da rapariga que temia a impostura da língua.
Mas é afinal em cada dia, em cada manhã do livro, em cada despertar do texto, que esta cena regressa, volta e se revolta; "Sentei-me na cama, com a mão na boca, levantada pela palavra; a primeira fase de articulação é inaudível, depois, a garganta sussurra, desce o papel de pensar para a mão direita que guia o sussurro sobre o lápis; enfim, é manhã de sábado, e o dia que amanhece – vital para mim. Estas emoções, em certos períodos, repetem-se quotidianamente.”
“Ervilhas e Bach”, crónica de Eduardo Prado Coelho para o suplemento Leituras do jornal Público. Sábado, 15 de outubro de 1994, p. 12.
CARREIRO, José. “Maria Gabriela Llansol, por Eduardo Prado Coelho”. Portugal, Folha de Poesia, 03-11-2019. Disponível em: https://folhadepoesia.blogspot.com/2019/11/maria-gabriela-llansol-por-eduardo.html
Subscrever: Enviar feedback (Atom)
Pesquisar neste blogue
Literaturas de Língua Portuguesa
- Literatura portuguesa
- Literatura açoriana
- Literatura madeirense
- Literatura galega
- Literatura brasileira
- Literaturas africanas de língua portuguesa
- Glossário africano
- Literatura angolana
- Literatura moçambicana
- Literatura guineense
- Literatura cabo-verdiana
- Literatura santomense
- Relações históricas entre Macau e Timor-Leste
- Literatura timorense
- Literatura macaense
- Literatura goesa
- Literatura oral tradicional
- Cancioneiro popular
- Romanceiro
- Conto popular
- Oratura - antologia mínima de literatura oral tradicional no espaço lusófono
- Disciplina de Literaturas de Língua Portuguesa
Assuntos do blogue
- 25 DE ABRIL SEMPRE (71)
- Açores (198)
- Amor e Erotismo (95)
- Antero de Quental (54)
- Antiguidade (10)
- Autoconhecimento (23)
- Brasil (25)
- Camilo Pessanha (38)
- Camões (28)
- Cesariny (10)
- Cesário Verde (17)
- CHUVA DE ÉPOCA (23)
- Cinema (6)
- Condição Humana (47)
- Criação Artística (53)
- Eduardo Prado Coelho (25)
- Educação Literária (36)
- Escrita Criativa / Recreativa / Lúdica (24)
- Eugénio de Andrade (28)
- Fernando Pessoa (125)
- Guerra (5)
- Herberto Helder (13)
- Intertextualidade (49)
- Jorge de Sena (22)
- José Carreiro (38)
- José Saramago (8)
- Lisboa (9)
- Literatura Popular (35)
- Lugares (60)
- Manuel da Fonseca (3)
- Miguel Torga (20)
- Música (63)
- Nacionalismos (50)
- Natália Correia (38)
- PALOP (19)
- Pandemia (7)
- Relacionamentos (26)
- Rui Knopfli (12)
- Sagrado e Profano (27)
- Sátira (4)
- Saudade (1)
- Séc.12-15 (27)
- Séc.16-18 (24)
- Séc.19 (106)
- Séc.20 (286)
- Séc.21 (86)
- Sophia Andresen (49)
- Teatro (3)
- Vitorino Nemésio (57)
Arquivo do blogue
- ▼ 2019 (51)
- ▼ novembro (7)
- No aniversário dele. Do Fernando Pessoa.
- Correio literário, ou como chegar a ser (ou não ch...
- Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre Mapas o Asso...
- Jacinto do Prado Coelho, por Eduardo Prado Coelho
- Crónica de Eduardo Prado Coelho sobre David Mourão...
- Se a morte fosse uma rosa obscura – Crónica de Edu...
- Maria Gabriela Llansol, por Eduardo Prado Coelho
- ▼ novembro (7)
Sem comentários:
Enviar um comentário