segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O pensamento de PASOLINI, por José Castello, in rascunhodopovo.com.br


"Ao contemplar o ausente no espelho da memória, escolhemos, de certa forma, a ilusão. Mas, diz Joubert, ilusão e jogo são os elementos do prazer. Da alegria de viver. Não se desgrudam.
É nesse ponto que Joseph Joubert, o católico, se encontra com Pier Paolo Pasolini, o cineasta ateu. Um ateu místico, é verdade, mas ateu. Ontem à noite, revi Pocilga, um de seus filmes que mais admiro. Estava a reler Joubert e, com a vista cansada, decidi me apoiar (como um cego) em Pasolini. As palavras de Joubert e de Pasolini se embaralharam dentro de mim. Não me importo com isso: detesto ser meu próprio inspetor de ensino. Elas formaram uma espécie de sonho intelectual, que não deixa de ser a essência de todo pensamento. Sim, o pensamento está atravessado pelo sonho; é impossível pensar sem sonhar. Ambos nos prometem a verdade, mas nesse aspecto os sonhos são mais sábios. Em dada cena de Pocilga, já perto do desfecho, está a frase síntese: “Mas qual é a verdade dos sonhos, senão nos deixar ansiosos pela verdade?”.
É aí, na ânsia pela verdade — procura de um lugar a que nunca se chega —, que Joubert e Pasolini se encontram. Encontram-se e alçam vôo. Ânsia sem ansiedade. Sem angústia. Ânsia que é mais uma elevação. Um sonho também. Que é não aflição pela verdade, mas desejo de verdade. Jogo, portanto. Pasolini tinha o poder de arrancar das cenas mais detestáveis uma imensa beleza. O filho que é devorado pelos porcos enquanto o pai festeja uma nova sociedade comercial, em suas mãos, se torna a imagem perfeita não de uma derrota, mas de uma entrega. Enquanto o pai (herói de um mundo consumista) devora seu banquete, o filho se deixa devorar. Se deixa afetar.
São vozes que se acumulam em minha mente. Dentro de mim, como em um precário teatro, Joubert e Pasolini se põem, então, a conversar. Faço de suas idéias minhas idéias. De seus pensamentos, meus pensamentos. Volto a Joubert, que jamais se iludiu com a hipótese de auto-suficiência do pensamento: “O cérebro é como um depósito de água; não devemos confundi-lo com a fonte”. Somos formados pelo que lemos. Pelo que experimentamos. Pelo que devoramos. Como o personagem triste de Pasolini, em vez de devorar, somos devorados. Os melhores pensamentos, em vez de nos achatar com seu peso, nos fazem voar.
Nada disso exclui a ânsia pela verdade. Repito Pasolini: os sonhos nos deixam ansiosos pela verdade. Joubert dialoga com ele: “Vocês chegam à verdade através da poesia e eu chego à poesia através da verdade”. A poesia não é qualquer coisa. Não é beleza inútil. A poesia é uma busca. Um vôo em direção à verdade. Vôo interminável, e essa é sua verdade. Leiam Joubert, revejam Pasolini e talvez entendam isso.
Volto, uma vez ainda, a Joubert: “Não gosto da filosofia (e sobretudo da metafísica) nem quadrúpeda, nem bípeda… Eu a quero alada e cantora. Que a metafísica tenha, pois, asas”. É o que um filme como Pocilga produz em quem o vê: asas e canto.
Elevação e prazer. Vida, para usar uma só palavra."

JOSÉ CASTELLO

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