sexta-feira, 21 de julho de 2023

Quem foi Aristides de Sousa Mendes. (Extracto da Internet)

 




A Segunda Guerra e a "Circular 14"

Ao longo dos anos 30 e com o aproximar da guerra, Portugal começa a ser um destino de refugiados e a PVDE detecta e desmantela várias redes de falsificação de passaportes portugueses que são vendidos sobretudo a judeus e apátridas.[31] O pano de fundo político‐ideológico do Estado Novo fazia do comunismo a grande ameaça à salvaguarda da ordem e equilíbrio pretendidos pelo regime, daí que, logo em 1933, a PVDE tenha alertado o MNE para a necessidade de uma estratégia mais rigorosa para a concessão de vistos a estrangeiros, com especial atenção à possibilidade de entrada em território nacional de indivíduos considerados subversivos.[nota 3] Com ou sem fundamento, quem encarnava quase sempre essa "fobia anticomunista", eram os polacos, os russos, os apátridas e os judeus.[nota 4]

Em 1937 Salazar publicou vários textos onde criticou os fundamentos das leis de Nuremberga e considerou lamentável que o nacionalismo alemão estivesse vincado por características raciais.[32] E em 1938, o Cardeal-Patriarca de Lisboa, Manuel Gonçalves Cerejeira criticou o regime Hitleriano por se basear na ideia de raça para edificar um Estado.[33] Também em 1938, Salazar sai em defesa dos judeus portugueses, dando instruções à embaixada na Alemanha, para que os interesses dos judeus portugueses sejam defendidos com diplomacia mas com muita firmeza[34][nota 5].

O historiador da Yad Vashem Avraham Milgram afirma peremptoriamente que o anti-semitismo moderno não teve qualquer acolhimento em Portugal[nota 6] e faz notar que Salazar autorizou que, durante a guerra, se estabelecessem em Lisboa as várias organizações judaicas de apoio aos refugiados judeus. Milgram também escreve que quando comparando a atitude dos funcionários consulares de países como Brasil, Argentina e Estados Unidos, com a atitude dos funcionários consulares portugueses se nota nos portugueses uma quase ausência de preconceitos anti-semitas, o que se pode considerar quase sui generis entre os serviços consulares de então.[36]

Com a anexação da Áustria em 1938 a situação de milhares de Judeus sofre uma mudança significativa. Os países vizinhos não tardaram a tomar medidas restritivas contra a emigração.[nota 7] O Presidente Roosevelt convocou a conferência de Evian com o intuito de discutir o problema dos judeus na Europa. A conferência saldou-se num logro com a maioria dos países a recusarem-se a receber os judeus alemães[nota 8]. Portugal, não podendo, pela sua pequena dimensão, ser parte da solução, não foi sequer convidado a participar nesta conferência. César Sousa Mendes, irmão gémeo de Aristides, é Embaixador em Varsóvia quando a Polónia aprova várias leis anti-semitas e preocupado com a perspectiva de uma vaga de emigração de polacos indesejados para Portugal escreve para o MNE a solicitar que sejam tomadas medidas restritivas.[31]

No dia 1 de Setembro de 1939 a Alemanha invade a Polónia. Passados dois dias, a 3 de Setembro, a França e a Grã-Bretanha, seguidos pela Austrália, Canadá, Nova Zelândia e África do Sul, declaram guerra à Alemanha. O período que se segue ficou conhecido como a falsa guerra ("phoney war" ou "drole de guerre"). A guerra estava declarada mas nenhum dos lados tomou a iniciativa de fazer qualquer ofensiva significativa. É nesta altura que Aristides decide levar parte da família para Portugal, mais uma vez desrespeitando o procedimento de pedir autorização superior, reincidindo na desobediência de abandono de posto.[37]

Com o início da guerra, e não obstante a fiscalização e o rigor nas fronteiras ser cada vez mais apertado, o descontrolo subsiste. Às entradas clandestinas, juntar‐se‐iam a falsificação de documentos e as falsas declarações. Segundo estatísticas da PVDE, só entre Setembro e Dezembro entram em Portugal, via Lisboa e Leixões, cerca de 8889 estrangeiros.[31] Assim sendo, havia que por cobro aos procedimentos irregulares que, na época, se verificavam em muitas das embaixadas portuguesas; para tal serviu a Circular n.º 14 do MNE, distribuída a 11 de Novembro de 1939, que obrigava os serviços consulares a consultar a PVDE, e o Ministério antes de concederem vistos a apátridas, russos e judeus expulsos dos seus países. A Circular 14 afirmava explicitamente que não tinha qualquer intenção de obstruir ou atrasar a concessão de vistos a passageiros em trânsito para outros países, utilizando Lisboa, como ponto de embarque. Ou seja, os consulados ficavam autorizados a conceder com autonomia vistos para Portugal em todos aqueles casos em que o passageiro demonstrasse ter um bilhete de saída do território português bem como um visto de entrada no país de destino. O destino dos que fugiam era geralmente as Américas, mas muitos vistos eram também concedidos, como hoje o são, a turistas e pessoas em negócios.[14]

Esta Circular 14 tem sido muito criticada, sobretudo por aqueles que querem atacar o Estado Novo, contudo as regras estabelecidas por esta circular eram bem menos restritivas que a de outros países, como é o caso dos Estados Unidos[38] e Canadá, e o caso mais extremo da Grã-Bretanha que logo a seguir à declaração de guerra, cancelou por completo a concessão de vistos, com receio da entrada de inimigos infiltrados.[nota 9] Portugal tal como os outros países tentava proteger-se de entradas indiscriminadas de eventuais agitadores políticos, criminosos, apátridas, etc. e não tinha por base motivações anti-semitas. Por outro lado, como escreve Avraham Milgram, Portugal, país pobre, não tinha condições de receber hordas de refugiados.[2]

Poucos dias após a distribuição da Circular 14, e ainda muitos meses antes de se terem iniciado as hostilidades na fronteira Francesa, em Novembro de 1939, Aristides concede um visto a Arnold Wizniter,[14] um judeu, austríaco e antigo professor universitário, sem previamente pedir autorização ao MNE. Mais tarde, Aristides, reconhecendo o seu erro, justifica o acto como sendo um acto humanitário, já que caso não o fizesse Arnold Wizniter seria internado num campo de concentração. (Tratava-se de campos de internamento franceses onde as autoridades francesas internavam alemães e cidadãos do III Reich).

Pouco tempo depois, em 1 de Março de 1940, mais uma vez muito antes do início das hostilidades na fronteira francesa, Sousa Mendes concede mais um visto sem prévia autorização do MNE, o que lhe causará uma advertência pela infracção. Desta vez, tratou‐se de um refugiado político espanhol, o comunista Eduardo Neira Laporte,[14] médico que exercera o cargo de professor na Universidade de Barcelona e que, à época era o dirigente da comunidade basca espanhola em Rivière (uma aldeia perto de Dax, em França). O Ministério informou Sousa Mendes da recusa para a concessão do visto para este caso, mas Sousa Mendes ou não esperou pela resposta do MNE, ou quis ignorá-la, e concedeu o visto.

Maio de 1940 — apoia refugiados fornecendo documentos

A 10 de maio de 1940 a Alemanha lança uma ofensiva contra a França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo. É nesta altura que milhões de pessoas começam a abandonar os seus lares e terras fugindo à invazão nazi.

A 30 de maio, um casal luxemburguês, não-judeu, Paul Miny de 21 anos e Maria Miny de 35 anos pedem ajuda a Aristides para conseguirem fugir para Portugal. Paul e Maria, sabendo que lhes seria difícil abandonar a França, pois Paul, por ser maior de 21 anos, seria mobilizado para o exército luxemburguês que estava a ser organizado no norte de França, pedem a Aristides que lhes falsifique passaportes atribuindo-lhes a nacionalidade portuguesa. Maria, era conhecida de Aristides, era portuguesa por nascimento mas tinha perdido a nacionalidade pelo casamento. Maria conseguiu que Aristides emitisse um passaporte português, falso, no qual Paul foi incluído, mas na qualidade de irmão e com a idade de 19 anos de modo a conseguir ludibriar as autoridades francesas e desertar.[14][40] Esta falsificação de passaporte era passível de pena de prisão até 2 anos e expulsão da função pública, mas no processo disciplinar que é movido a Aristides, a acusação de forma benevolente[41] decide ignorar este facto, considerando-o um caso fora do âmbito das competências do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas sim um caso de polícia.[14][41]

Junho de 1940 — concede vistos indiscriminadamente

Com o exército alemão a aproximar-se de Paris, gera-se o pânico na população francesa que se põe em fuga e dá-se então início ao maior movimento de deslocação de pessoas da história da Europa.[42] Estima-se que entre oito a dez milhões de pessoas, sobretudo mulheres, velhos e crianças, em pânico, se tenham posto em fuga, em direcção ao sul, mas sem um destino concreto, num movimento desordenado, chegando inclusivamente a limitar a manobra do exército francês, e chegando ao ponto de na parte final, a multidão, já ultrapassada pelo exército alemão, estar já a fugir em direcção ao inimigo.[nota 10]

Até esta altura, e desde o início da guerra, o consulado português tinha emitido cerca de 1200 vistos, quase todos autorizados pelo MNE, com excepção dos vistos passados ao comunista Neira Laporte, ao judeu austríaco Arnold Wizniter e mais alguns vistos, poucos, que Aristides na altura negou[14] mas que hoje podem ser identificados. Note-se que Bordéus não era o único consulado que emitia vistos. Durante este período todos os restantes consulados portugueses espalhados pela Europa distribuíram vistos. Tal era o caso de Antuérpia, Paris, Toulouse, Berlim, Hendaia, etc.[2]

É em princípios de Junho de 1940 que a avalanche de população em fuga se abate sobre Bordéus.[nota 11] Os números falam por si. Nos primeiros 10 dias de Junho o consulado Português de Bordéus emitiu 59 vistos regulares. No dia 10 de Junho a Itália declarou guerra à França e à Grã-Bretanha. No dia 11 de Junho o consulado emitiu 67 vistos, a 12 emitiu 47. No dia 12 de Junho a Espanha altera a sua posição de país neutral para não-beligerante colocando a neutralidade de Portugal em risco. No dia 13 de Junho o consulado emitiu apenas 6 vistos.[14] Foi provavelmente no dia 13 que Aristides, sucumbindo à pressão psicológica de ter de auxiliar uma população em pânico e também pressionado pelos escândalos provocados no consulado pela sua amante grávida,[nota 12] se retirou para o seu quarto onde esteve três dias deitado com um esgotamento nervoso.[45]

Com Sousa Mendes acamado o consulado continua a emitir vistos; no dia 14 de Junho emitiu 173 vistos, e a 15 emitiu 112. A 16 de Junho o diplomata Francisco Calheiros e Menezes chega a Bordéus e é recebido pelo Cônsul, num quarto escuro onde o cônsul se encontra acamado, exausto.[14] Nesse mesmo dia, 16 de Junho, um domingo, Sousa Mendes emitiu 40 vistos e inclusivamente diz que cobrou pessoalmente os emolumentos suplementares a que tinha direito por estar a trabalhar a um domingo. Aristides recorda em particular os vistos que concedeu ao banqueiro Rothschild, que não quis esperar por segunda-feira e se prestou a pagar os emolumentos suplementares.[14]

É no dia 17 de Junho que Aristides, dizendo-se inspirado por um poder divino,[46][47] decide conceder visto a todos os que lho pedissem: "A partir de agora, darei vistos a toda a gente, já não há nacionalidades, raça ou religião". Com a ajuda dos seus filhos e sobrinhos e do rabino Kruger, ele carimba passaportes, assina vistos, usando todas as folhas de papel disponíveis. No dia 17 emitiu 247 vistos, dos quais muitos a cidadãos portugueses.[nota 13] No dia 18 emitiu 221 vistos e no dia 19 emitiu 156 vistos.

Entre as pessoas que o estão a ajudar encontra-se o Rabino de AntuérpiaJacob Kruger, que lhe faz compreender que há que salvar os refugiados judeus.

Confrontado com os primeiros avisos de Lisboa, ele terá dito:

Segundo alguma literatura Aristides, com a ajuda da família e do Rabino Kruger, terá montado uma "linha de montagem" para conceder milhares de vistos. Contudo, o escritor americano Eugene Bagger, deixou um testemunho algo diferente. Eugene Bagger conta que esteve, em vão, todo o dia 18 esperando numa longa fila para conseguir o seu visto e que já eram 7 horas da tarde quando desistiu. Dormiu no carro e no dia seguinte voltou ao consulado onde passou a manhã esperando, novamente em vão, tendo desistido por volta das 11 horas. Dirigiu-se então ao hotel Splendid onde encontrou Sousa Mendes tomando um aperitivo com um amigo. Sousa Mendes queixou-se-lhe do excesso de trabalho e calor da véspera. Assinou-lhe o passaporte e disse-lhe que voltasse ao consulado para que lho carimbassem. Quem ajudou Eugene Bagger foi um Polaco, que tinha sido cônsul honorário e que levou Bagger ao consulado e lhe carimbou o passaporte.[48][nota 14]

O MNE só se dá conta deste problema, no dia 20 de Junho, quando é surpreendido por uma nota enviada pela Embaixada Britânica que se queixa de que o cônsul português está a protelar a passagem de vistos para fora do horário de expediente, para poder receber mais emolumentos e que, adicionalmente, em pelo menos um caso tinha exigido uma contribuição indevida para um fundo de caridade.[14][nota 15] (Não era a primeira vez que Aristides era acusado de estar a exigir, indevidamente, contribuições para fundos de caridade a troco de serviços consulares, tal já havia ocorrido em 1923 quando o cônsul se encontrava em São Francisco).

O MNE ordena então à embaixada em Paris que resolva o problema em Bordéus. Nesse mesmo dia Aristides parte para o consulado de Baiona onde continua a sua actividade de 20 a 23 de junho, no escritório de um vice-cônsul estupefacto.

Em 22 de junho de 1940 a França e a Alemanha assinaram um armistício. Terminam as hostilidades e o Reino Unido é a única potência em guerra com a Alemanha. Os refugiados começam então a poder regressar a suas casas. Contagens oficiais apontam para mais de 6 milhões de refugiados, dos quais 2 milhões são parisienses e 1 milhão e 800 mil são belgas.[nota 16]

O escritor Eugene Bagger relata nas suas memórias que no dia 21 de Junho viu Sousa Mendes a sair apressadamente do Consulado de Portugal em Bayone gritando, com a cabeça entre as mãos, “Vão-se embora! Não há mais vistos!” e que saltou para dentro de um carro tendo sido perseguido por uma multidão que o amaldiçoava.[49] Apesar do armistício, Aristides continua a emitir vistos, em desespero começa a emitir vistos em papéis improvisados, mas estes vistos improvisados não serão aceites na fronteira Espanhola. O Embaixador de Portugal em Madrid, Pedro Teotónio Pereira recebe protestos das autoridades Espanholas e desloca-se à fronteira de Irun onde, segundo as suas palavras, encontra Aristides com um aspecto de grande desalinho, um homem perturbado e fora do seu estado normal". E acrescenta não ter o cônsul "a mais ligeira noção dos actos cometidos”.[50] Os actos de Sousa Mendes não podiam ter vindo em altura menos apropriada para a política de neutralidade seguida por Salazar e Teotónio Pereira. Os tanques alemães estavam a chegar aos Pirenéus e existia um risco real que a Espanha ou a Alemanha invadissem Portugal.[51][52]

Apesar de terem sido enviados funcionários para impedir Sousa Mendes de continuar a atribuição indiscriminada de vistos, este lidera, com a sua viatura, uma coluna de veículos de refugiados e guia-os em direcção à fronteira, onde, do lado espanhol, não existem telefones. Por isso mesmo, os guardas fronteiriços não tinham sido ainda avisados da decisão de Madrid de fechar as fronteiras com a França. Sousa Mendes impressiona os guardas aduaneiros, que acabariam por deixar passar todos os refugiados, que, com os seus vistos, puderam continuar viagem até Portugal.

Antes, durante e depois do episódio de Aristides em Bordéus, os consulados portugueses continuaram sempre a conceder vistos a todos aqueles que queriam utilizar Portugal como ponto de passagem, sobretudo para as Américas.

Passados dois dias de Sousa Mendes ter sido exonerado os escritórios da HICEM[nota 17] foram transferidos para Lisboa. Passados mais alguns dias a Madeira aceitou acolher cerca de 2500 refugiados gibraltinos, na sua maioria mulheres e crianças que chegaram ao Funchal entre 21 de Julho e 13 de Agosto de 1940. Foram acomodados em hotéis, pensões e casas particulares e aí permaneceram até ao fim da Guerra.[53][nota 18]

As pessoas com vistos emitidos por Sousa Mendes foram autorizadas a entrar em Portugal, foram acolhidas, alimentadas e apoiadas. Um simples carimbo no passaporte não teria bastado para salvar um refugiado.

Numa entrevista recente, Rui Afonso, biógrafo e admirador de Aristides, conta-nos que depois de muitos anos de investigação tem chegado à conclusão que a maioria dos refugiados ajudados por Aristides eram pessoas com meios. Claro que pessoas como o rabino polaco Chaim Kruger, homem relativamente pobre, eram pessoas de meios muito mais modestos do que os milionários e aristocratas que também receberam vistos. Havia homens de negócio, industriais, muita gente que trabalhava na indústria dos diamantes na Antuérpia, atores de cinema, pianistas, pintores, intelectuais, banqueiros etc. Para ter passaporte e para viajar era preciso, na altura, ter meios financeiros.[56]

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