segunda-feira, 9 de maio de 2022

Sobre Federico Fellini, in INTERNET

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." O fenômeno Fellini advém nesta fase de constituição do novo papel do realizador e de aclamação da Nouvelle Vague. Fellini já era, então, um autor reconhecido, várias vezes premiado em mostras internacionais, inclusive com dois Oscars, por La Strada e Le Notti di Cabiria, e integrado ao panteão da crítica. O triunfo estrondoso de crítica, de público e na mídia de La Dolce Vita, lançado no início de 1960, provoca uma mudança qualitativa no seu prestígio: converte-se na expressão do novo estatuto autoral[ix]. Assim no período entre La Dolce Vita e Otto e Mezzo (1963), Fellini se consolida para a opinião pública internacional como principal autor do cinema italiano, sucedendo a Rossellini nesse papel emblemático no foro originário do cinema de autor.

Passa a simbolizar o novo estágio de relações entre autor e indústria, em que o papel de diretor, promovido a protagonista do processo cinematográfico, deixa a situação artesanal e o ponto de vista da escassez e se integra ao núcleo de um mercado de luxo. Sinalizando o valor de referência central assumido por Fellini na nova conjuntura, o qualificativo “felliniano” (para designar certos traços ou situações) passa a ser adotado pela mídia de vários países.

Quais as causas dessa apoteose, que leva à iconização de Fellini? Teria sido casual e absurda a ascensão de Fellini a tal patamar? Ao invés, seria possível supor que o fenômeno comportasse uma tentativa da mídia e do público de assimilar os efeitos de La Dolce Vita[x]. Como explicar a diferenciação crucial que singularizou a recepção dessa obra, frente a outros produtos do cinema de autor? O que caracterizaria seu teor de novidade? Desde logo, neste plano dominado pela suscetibilidade imediata, pode-se considerar secundária a questão especificamente estética de sua estrutura, consoante a outras formas narrativas contemporâneas e cuja análise não cabe aqui.

Seu primeiro impacto decorreria da surpresa, precisamente, da novidade de sua orientação temática. Isto é, do fato de se destacar seja do mundo da penúria ou de exclusão do mercado – típico do neorrealismo –, seja do subjetivismo intimista, explorado subsequentemente como variante ao neorrealismo, de diferentes modos, por Visconti, Rossellini, Antonioni. Em troca, La Dolce Vita desnudava o predomínio do marketing na cultura e nos serviços, modificando os costumes e afetando com intensidade específica o cinema – nessa experiência, possivelmente à frente das demais artes. Uma declaração de Fellini nessa época atestava o papel polêmico que conferia à sua intervenção, frente ao coro dos valores humanistas dos bem pensantes, inclusive das hostes neorrealistas[xi]: “Vamos ter um pouco mais de coragem? Vamos deixar de lado as dissimulações, as ilusões equivocadas, os fascismos, os qualunquismos[xii], as paixões estéreis? Tudo se rompeu. Não acreditamos em mais nada. E daí?”[xiii].

La Dolce Vita trazia como protagonista um híbrido de jornalista, agente comercial e relações públicas tanto da cultura quanto da moda. E observava uma mutação radical dos valores e das condutas. Apresentava o poder das relações de mercado moldando a arte, a cultura em geral, e a gama das relações humanas em jogo. A força de impacto da obra nascia da exposição dramática das suas condicionantes, redefinindo a imanência do cinema e propondo um olhar mais analítico sobre o mundo das imagens[xiv]. Operava-se, então, uma conjunção inédita e chocante, para muitos, entre referência ao processo da obra, ou exposição de sua estrutura, e caracterização dos mecanismos de mercado, implantados na Europa pós-Plano Marshall, e na Itália do chamado miracolo industrial dos anos 1950.

A investigação do novo quadro de relações entre arte e indústria iria se desdobrar em Otto e Mezzo, que descortinaria a reorientação do processo cinematográfico, justamente a partir do diretor autor, encarnado por Guido – cortejado e homenageado pelo seu produtor, em moldes impensáveis antes do advento do cinema de autor. De modo análogo, os atores gravitavam docilmente em torno do diretor – como os componentes de uma orquestra musical em torno do maestro, ou seja, de modo também irreal para o star-system estabelecido em Hollywood –, enquanto o embate de trabalho mais duro, vivido por Guido, vinha precisamente do choque de ideias com o escritor – logo, outro sinal de sua caracterização como autor.

Desse modo, enquanto a Nouvelle Vague recorria à noção do autor como dogma estético mediante fórmulas teóricas – como política dos autores ou caméra-stylo – ou por outras vias (tal a afirmação do teor autobiográfico de Les Quatre Cents Coups), já o trabalho de Fellini introduzia uma nova perspectiva de questionamento do processo de produção. Entretanto o calor da hora, marcada pela voga do cinema de autor, transformaria Otto e Mezzo em paradigma da perspectiva autoral, eclipsando seu projeto crítico, para contrariedade do realizador[xv].

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