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Extracto do Capítulo 1 desta obra de Eça de Queirós. Esta obra é de um novo estilo na obra deste escritor.Cansado de criticar a sociedade portuguesa, comparando-a, para pior, com ou outros países da Europa e do Mundo, descansa ,agora, vendo as virtudes do viver rural das nossas gentes.
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"Ao contrário no campo, entre a inconsciência e a impassibilidade da Natureza, ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão. Estava aícomo perdido num mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os espinhos para que ele passasse; se gemesse com fome nenhuma árvore, por mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na ponta compassiva de um ramo. Depois, em meio da Natureza, ele assistia à súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos - ser um gênio ou ser um santo? As searas não compreendem as "Geórgicas"; e fora necessário o socorro ansioso de Deus, e a inversão de todas as leis naturais, e um violento milagre para que o lobo de Agúbio não devorasse S. Francisco de Assis, que lhe sorria e lhe estendia os braços e lhe chamava "meu irmão lobo"! Toda a intelectualidade, nos campos, se esteriliza, e só resta a bestialidade. Nesses reinos crassos do Vegetal e do Animal duas únicas funcções se mantêm vivas, a nutritiva e a procreadora. Isolada, sem occupação, entre focinhos e raizes que não cessam de sugar e de pastar, sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma toda se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa matéria dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao cabo de uma semana rural, de todo o seu ser tão nobremente composto só restava um estômago e por baixo um falo! A alma? Sumida sob a besta. E necessitava correr, reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustrais da Civilização, para largar nelas a crosta vegetativa, e ressurgir re-humanisado, de novo espiritual e Jacíntico!
E estas requintadas metáforas do meu amigo exprimiam sentimentos reaes - que eu testemunhei, que muito me divertiram, no único passeio que fizemos ao campo, à bem amável e bem sociável floresta de Montmorency. Oh delécias de entremez, Jacinto entre a Natureza! Logo que se afastava dos pavimentos de madeira, do macadam, qualquer chão que os seus pés calcassem o enchia de desconfiança e terror. Toda a relva, por mais crestada, lhe parecia reçumar uma humidade mortal. De sob cada torrão, da sombra de cada pedra, receava o assalto de lacraus, de víboras, de fórmas rastejantes e viscosas. No silêncio do bosque sentia um lúgubre despovoamento do Universo. Não tolerava a familiaridade dos galhos que lhe roçassem a manga ou a face. Saltar uma sebe era para ele um ato degradante que o retrogradava ao macaco inicial. Todas as flores que não tivesse já encontrado em jardins, domesticadas por longos séculos de servidão ornamental, o inquietavam como venenosas. E considerava de uma melancolia funambulesca certos modos e fprmas do Ser inanimado, a pressa esperta e vã dos regatinhos, a careca dos rochedos, todas as contorsões do arvoredo e o seu resmungar solemne e tonto.
Depois de uma hora, naquele honesto bosque de Montmorency, o meu pobre amigo abafava, apavorado, experimentando já esse lento mingoar e sumir d'alma que o tornava como um bicho entre bichos. Só desanuviou quando penetramos no lagedo e no gás de Paris - e a nossa vitória quase se despedaçou contra um ônibus retumbante, atulhado de cidadãos. Mandou descer pelos Boulevards, para dissipar, na sua grossa sociabilidade, aquela materialização em que sentia a cabeça pesada e vaga como a dum boi. E reclamou que eu o acompanhasse ao theatro das Variedades para sacudir, com os estribilhos da Femme à Papa, o rumor importuno que lhe ficára dos melros cantando nos choupos altos.
Este delicioso Jacinto fizera então vinte e três anos, e era um soberbo moço em quem reaparecera a força dos velhos Jacintos rurais. Só pelo nariz, afilado, com narinas quase transparentes, de uma mobilidade inquieta, como se andasse fariscando perfumes, pertencia às delicadezas do século XIX. O cabelo ainda se conservava, ao modo das eras rudes, crespo e quase lanígero: e o bigode, como o dum Celta, caía em fios sedosos, que ele necessitava aparar e frisar. Todo o seu fato, as espessas gravatas de cetim escuro que uma pérola prendia, as luvas de anta branca, o verniz das botas, vinham de Londres em caixotes de cedro; e usava sempre ao peito uma flor, não natural, mas composta destramente pela sua ramalheteira com petalas de flores dessemelhantes, cravo, azaléia, orquídea ou tulipa, fundidas na mesma haste entre uma leve folhagem de funcho.
Em 1880, em Fevereiro, numa cinzenta e arrepiada manhã de chuva, recebi uma carta de meu bom tio Afonso Fernandes, em que, depois de lamentações sobre os seus setenta anos, os seus males hemorroidais, e a pesada gerência dos seus bens "que pedia homem mais novo, com pernas mais rijas" me ordenava que recolhesse á nossa casa de Guiães, no Douro! Encostado ao marmore partido do fogão, onde na véspera a minha Nini deixára um espartilho embrulhado no Jornal dos Debates, censurei severamente meu tio que assim cortava em botão, antes de desabrochar, a flor do meu saber Jurídico. Depois num Post-Scriptum ele acrescentava: «O tempo aqui está lindo, o que se póde chamar de rosas, e tua santa tia muito se recommenda, que anda lá pela cozinha, porque vai hoje em trinta e seis anos que casamos, temos cá o abade e o Quintais a jantar, e ela quiz fazer uma sopa dourada».
Deitando uma acha ao lume, pensei como devia estar boa a sopa dourada da tia Vicência. Ha quantos anos não a provava, nem o leitão assado, nem o arroz de forno da nossa casa! Com o tempo assim tão lindo, já as mimosas do nosso pátio vergariam sob os seus grandes cachos amarelos. Um pedaço de céu azul, do azul de Guiães, que outro não há tão lustroso e macio, entrou pelo quarto, alumiou, sobre a poida tristeza do tapete, relvas, ribeirinhos, malmequeres e flores de trevo de que meus olhos andavam aguados. E, por entre as bambinelas de sarja, passou um ar fino e forte e cheiroso de serra e de pinheiral.
Assobiando um fado meigo tirei debaixo da cama a minha velha mala, e meti solicitamente entre calças e peúgas um Tratado de Direito Civil, para aprender enfim, nos vagares da aldeia, estendido sob a faia, as leis que regem os homens. Depois, nessa tarde, anunciei a Jacinto que partia para Guiães. O meu camarada recuou com um surdo gemido de espanto e piedade:
—Para Guiães!... Oh Zé Fernandes, que horror!
E toda essa semana me lembrou solicitamente confortos de que eu me deveria prover para que pudesse conservar, nos ermos silvestres, tão longe da Cidade, uma pouca d'alma dentro d'um pouco de corpo. «Leva uma poltrona! Leva a Enciclopédia Geral! Leva caixas de aspargos!...»
Mas para o meu Jacinto, desde que assim me arrancavam da Cidade, eu era arbusto desarraigado que não reviverá. A mágoa com que me acompanhou ao comboio conviria excelentemente ao meu funeral. E quando fechou sobre mim a portinhola, gravemente, supremamente, como se cerra uma grade de sepultura, eu quase solucei - com saudades minhas.
Cheguei a Guiães. Ainda restavam flores nas mimosas do nosso pátio; comi com delicias a sopa dourada da tia Vicencia; de tamancos nos pés assisti à ceifa dos milhos. E assim de colheitas a lavras, crestando ao sol das eiras, caçando a perdiz nos matos geados, rachando a melancia fresca na poeira dos arraiais, arranchando a magustos, serandando à candeia, atiçando fogueiras de S. João, enfeitando presépios de Natal, por alli me passaram docemente sete anos, tão atarefados que nunca logrei abrir o Tratado de Direito Civil, e tão singelos que apenas me recordo quando, em vésperas de S. Nicolau, o abade caiu da égua à porta do Brás das Córtes. De Jacinto só recebia raramente algumas linhas, escrevinhadas à pressa por entre o tumulto da Civilização. Depois, num Setembro muito quente, ao lidar da vindima, meu bom tio Afonso Fernandes morreu, tão quietamente, Deus seja louvado por esta graça, como se cala um passarinho ao fim do seu bem cantado e bem voado dia. Acabei pela aldeia a roupa do luto. A minha afilhada Joaninha casou na matança do porco. Andaram obras no nosso telhado. Voltei a Paris.
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