terça-feira, 24 de julho de 2018

Poema de Bernardo Soares(heterónimo de Pessoa)





Noite Calma

No ar frio da noite calma 
Boia à vontade a minha alma, 
Quase sem querer viver 
Sente os momentos correr, 
Como uma folha no rio, 
Sente contra si o frio 
Das horas fluidas levando 
Seu inerte corpo brando. 

Mais do que isto? Para quê? 
Tudo quanto o olhar vê 
A mão toca, o ouvido escuta, 
A consciência perscruta, 
É inútil que se escutasse, 
Que se visse ou se pensasse. 

Entre as margens com arbustos 
Luze, na noite dos sustos, 
Só o luar repousado, 
Ao correr vago e amparado 
Do rio deixado em livre 
A alma passa, a alma vive. 

Ninguém. Só eu e o segredo 
Do luar e do arvoredo 
Que das margens causa medo. 

Nada. Só a hora inútil 
Só o sacrifício fútil 
De desejar sem querer 
E sem razão esquecer. 

Prolixa memória, toda. 
Rio indo como uma roda, 
Noite como um lago mudo, 
E a incerteza de tudo. 

Recosto-me, e a hora dorme. 
Corre-me o que a noite enorme 
Atribui à minha mágoa, 
Como um ser múrmuro de água. 

Ninguém; a noite e o luar. 
Nada; nem saber pensar. 
Raie o dia, ou morra eu 
Volte no oriente do céu 
O sol ou não volte mais, 
Só sempre os tédios iguais 
E as horas, calem o medo, 
Como o rio entre o arvoredo, 
De noturna consistência, 
Com fluida, vaga insistência. 
O mal é haver consciência.

Bernardo Soares(Pessoa)

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