domingo, 27 de setembro de 2015

NÃO VAI VOTAR, PELA PRIMEIRA VEZ...


A exemplar história de um homem que pela primeira vez decidiu não ir votar


Ana Cristina Pereira (texto) e Nelson Garrido (foto)

27/09/2015 - 09:43

(actualizado às 16:43 de 26/09/2015)


Aos 60 anos, a morar há quatro no Reino Unido, está como o país, envelhecido, endividado, à procura de saída lá fora.





“O gerente do banco a telefonar para casa e eu já sem saber o que dizer.” Ele conhecia as respostas: “Não estou a trabalhar”, “Não recebi”, “Não tenho dinheiro”
NELSON GARRIDO





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Não vai votar. Desta vez, não quer, não está para aí virado. Desde o 25 de Abril de 1974, Aníbal Reis só não votou nas presidenciais de 27 de Junho de 1976, ganhas pelo general Ramalho Eanes. Estava internado num hospital a roer-se por dentro por não poder participar naquela histórica decisão.

Teve uma infância difícil. Começou a trabalhar aos 11 anos numa pensão. Só tornou à escola por lá no Bairro, na freguesia de Nossa Senhora das Misericórdias, Ourém, terem criado turmas de 5º e 6º. Estava no 9º quando foi à inspecção. Já não teve de andar no mato de G3 ao ombro. Naquele ano Portugal libertou-se da ditadura e da guerra colonial e anos depois virou-se para a Europa. Aníbal quis ter casa, fazer férias no Sul, dar curso superior à filha. E durante anos tudo isso pareceu possível. De súbito, tudo se desmoronou.

Passa horas ao balcão, em Salford, nos arredores de Manchester, Noroeste de Inglaterra, de calça e colete. Trabalha no restaurante “Taste of Portugal”, traduzível por “Sabor de Portugal”. É como se o seu rosto fosse o rosto de uma nação envelhecida, endividada, calma mas diligente, à procura de saída lá fora. Não pensou que um dia teria de emigrar, como o pai. Durante 14 anos, trabalhou numa loja de produtos agrícolas e viu o negócio prosperar ao sabor da modernização de uma agricultura arcaica – Bruxelas impulsionou o investimento em máquinas, estábulos, novas plantações, sistemas de drenagem.

O país viveu um boom de construção. Aproveitando uma oportunidade para ganhar mais, Aníbal mudou-se para uma fábrica de tintas. “Tinha um gozo especial em abrir clientes”, diz. Ao fim de nove anos, foi aliciado pela concorrência. Volvidos dois anos, saiu do ramo. Já se sentia a retracção do investimento nas obras públicas, da recessão no mercado do imobiliário, depois de anos de desvario. O novo emprego, numa fábrica de máquinas de rótulos, durou menos de seis meses. “Havia ali algo de estranho. A empresa acabou por fechar.” Que fazer quando se fica desempregado, aos 52 anos, num país que amiúde recusa contratar trabalhadores mais velhos e não se coíbe de usar o critério etário na hora de despedir?

Decorria o Verão de 2008. Ainda nem caíra o Lehman Brothers, pedra de toque da crise, que começou no mercado de crédito imobiliário de alto risco dos EUA e se propagou à Europa, em particular ao Sul. Iam no adro as notícias sobre despedimentos, suspensões de contratos de trabalho, reduções de horário.

Em 2008, a taxa de desemprego foi de 7,6%. Subiu para 12,7% em 2011, ano em que a troika desembarcou em Portugal. Subiu para 15,5% em 2012 e para 16,2% em 2013. E desceu para 13,9% em 2014 e para 12,4% em 2015, segundo o Instituto Nacional de Estatística. Muito por efeito de gente que deixou de contar, como Aníbal.

Quando cá estava, fez “tudo o que apareceu”. Vendeu cartões de crédito numa grande superfície comercial. Trabalhou no recenseamento agrícola, no recenseamento da população, no recenseamento da habitação. Vestiu a pele de cliente mistério em lojas de telecomunicações e companhia de seguros. Comoveu-se ao entrevistar vítimas de esclerose múltipla. Foi administrativo numa junta de freguesia. Só trabalhos pontuais, mal pagos, muitas vezes tarde. E contas, contas, contas…

Nos anos 90, quando era permitido sonhar tudo, tudo, Aníbal pegara nos 60 mil euros que tinha poupado e construíra uma casa espaçosa. “Tinha o terreno e pensei: até ao telhado fica feito; o resto, hei-de conseguir.” Para a tornar habitável pedira outros 52,5 mil, com juros de 9%. Nunca chegou aos últimos acabamentos. Se se põe a pensar nisso, até pela conversa que por aí vai, é capaz de dizer que se deixou levar pelas facilidades do crédito. Se pensa mais ainda conclui que nunca lhe passou pela cabeça que um dia não conseguiria pagar comida, água, luz, medicamentos e 393 euros de prestação ao banco. Sempre acreditou que haveria dois salários a entrar até ele e a mulher chegarem à idade da reforma.

As depressões da mulher alongaram-se. Ela deixou de conseguir trabalhar. Enquanto ele teve salário, foram aguentado. Depois… “O gerente do banco a telefonar para casa e eu já sem saber o que dizer.” Ele conhecia as respostas: “Não estou a trabalhar”; “Não recebi”, “Não tenho dinheiro”. Quantas pessoas fingiriam não ouvir o telefone ou atenderiam e engoliriam em seco, como ele? Repetiam-se as notícias sobre famílias forçadas a entregar a casa ao banco. E sobre insolvências – já não relacionadas com o sector têxtil, como acontecera no início do século, quando a União Europeia abriu as portas à China, mas na construção, nos serviços, até nas famílias.

Partiram pessoas de todas as idades
Foram várias as gerações que saíram às ruas a 12 de Março de 2011. A família de Aníbal espelhava o porquê. Nunca se tornou jornalista a filha, que se licenciou em Comunicação e passou por vários estágios e trabalhos precários antes de se tornar administrativa num hospital privado. "Os pais quiseram o melhor para os filhos, investiram muito na educação deles, depois a situação do país alterou-se... De um momento para o outro, ficaram pais e filhos à rasca. "Não podia afundar-se, como o país. “Tive de dar uma volta à vida. Tive de renegociar o empréstimo – o meu pai tinha algum dinheiro e ajudou-me.” E teve de partir.

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