O Poema é uma Árvore de um Só Fruto
Creio que nenhum de vós há-de estranhar que eu diga que o poeta é aquele que perdeu a palavra antes de a poder dizer; dito de outro modo. Ele é o que fala ou escreve antes de conhecer o enunciado do que vai dizer. O grito, o silêncio, a aridez da não inspiração determinam inicialmente a criação poética; o poema nunca é real, nunca se efectiva numa conclusão, ou num objectivo determinado. O poema nasce de um grito, de um assombro, de uma ruptura, da noite do nada e da disponibilidade da linguagem relacional; é sempre a transposição de um referente real ou imaginário para uma linguagem de equivalência, mas necessariamente, livremente, distanciada da referência. Esta linguagem é a «coerência da incoerência», «uma linguagem na linguagem», mantendo embora a voz mesma do existente ausente que é o poeta, no «fingimento», na ficção, na heteronímia do poema. Longe de ser um astro fixo, o poema suspende o enunciado para fluir numa relação metamórfica de palavras, de imagens, de sons e de relações que são todos os elementos consonantes do poema; o poema é, assim, um ébrio fluir de chamas, de estrelas, de possibilidades, de vibrações, de silêncios de uma respiração errante em que a verdade nos escapa no mistério da sua nostalgia, na utopia da sua liberdade, na sua fuga de afirmação exemplar ou categórica; um poema é a reserva de um não dizível que o liberta da afirmação na dialéctica do «não» e do «sim» até à abolição do terrorismo mental, da racionalidade tecnocrática que asfixia a criatividade dos possíveis inesgotáveis do ser humano; o poema é o canto escrito que transcende o escrito e reflui para a origem do seu silêncio, mantendo a voz do sujeito na ignorância aberta, no fogo da sua sede, no fluir livre da linguagem e da confluência cosmogónica. O poema é uma árvore de um só fruto que floresce numa ruptura ou numa perda inicial que se ramifica e fluidifica entre a água e o fogo, entre o grito irrevogável e a melodia de um homem que se encontra na sua perda sem caminho, na plenitude do deserto, na plenitude de uma palavra nua, à luz de uma lâmpada sem morada na noite do mundo.
António Ramos Rosa, in 'Doutoramento «honoris causa» de António Ramos Rosa pela Universidade de Faro'
António Ramos Rosa, in 'Doutoramento «honoris causa» de António Ramos Rosa pela Universidade de Faro'
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