segunda-feira, 21 de março de 2022

 




O Poema é uma Árvore de um Só Fruto

Creio que nenhum de vós há-de estranhar que eu diga que o poeta é aquele que perdeu a palavra antes de a poder dizer; dito de outro modo. Ele é o que fala ou escreve antes de conhecer o enunciado do que vai dizer. O grito, o silêncio, a aridez da não inspiração determinam inicialmente a criação poética; o poema nunca é real, nunca se efectiva numa conclusão, ou num objectivo determinado. O poema nasce de um grito, de um assombro, de uma ruptura, da noite do nada e da disponibilidade da linguagem relacional; é sempre a transposição de um referente real ou imaginário para uma linguagem de equivalência, mas necessariamente, livremente, distanciada da referência. Esta linguagem é a «coerência da incoerência», «uma linguagem na linguagem», mantendo embora a voz mesma do existente ausente que é o poeta, no «fingimento», na ficção, na heteronímia do poema. Longe de ser um astro fixo, o poema suspende o enunciado para fluir numa relação metamórfica de palavras, de imagens, de sons e de relações que são todos os elementos consonantes do poema; o poema é, assim, um ébrio fluir de chamas, de estrelas, de possibilidades, de vibrações, de silêncios de uma respiração errante em que a verdade nos escapa no mistério da sua nostalgia, na utopia da sua liberdade, na sua fuga de afirmação exemplar ou categórica; um poema é a reserva de um não dizível que o liberta da afirmação na dialéctica do «não» e do «sim» até à abolição do terrorismo mental, da racionalidade tecnocrática que asfixia a criatividade dos possíveis inesgotáveis do ser humano; o poema é o canto escrito que transcende o escrito e reflui para a origem do seu silêncio, mantendo a voz do sujeito na ignorância aberta, no fogo da sua sede, no fluir livre da linguagem e da confluência cosmogónica. O poema é uma árvore de um só fruto que floresce numa ruptura ou numa perda inicial que se ramifica e fluidifica entre a água e o fogo, entre o grito irrevogável e a melodia de um homem que se encontra na sua perda sem caminho, na plenitude do deserto, na plenitude de uma palavra nua, à luz de uma lâmpada sem morada na noite do mundo.

António Ramos Rosa, in 'Doutoramento «honoris causa» de António Ramos Rosa pela Universidade de Faro'

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