quarta-feira, 28 de outubro de 2020

UM CONTO DE ANTÓNIO TORRADO







 Penso nos Autores Portugueses que ,nem sempre(quase nunca!!!!!!!!), merecem a consideração das editoras portuguesas. Elas só "LÁ" estão para os que já têm nome. E assim vão-se perdendo por aí as provas de que a Língua Portuguesa é única ,no mundo.Os poetas, por exemplo, se quiserem ver as suas obras publicadas têm que pagar mil, dois mil euros e depois, vejam, amigos, o HORROR que é o "português" exposto em locais como a FNAC, por exemplo.



Os textos que aqui vou publicando são de MESTRES, como António Torrado, Camilo, Pascoaes, etc.
Leiam, porque ler é matar a fome da "incultura"
A LADEIRA
Era uma vez dois homens. Um era alto, outro baixo. Um era gordo, outro magro. Um moreno, o outro ruivo. Um tinha a voz muito grossa e outro uma borbulha na ponta do nariz. Um chamava-se Manuel Francisco e o outro Francisco Manuel. E muito mais coisas poderia dizer de cada um deles. Mas, o fundamental, é que eram muito diferentes um do outro. Só numa coisa se assemelhavam: ambos eram tremendamente teimosos.
Na terra onde viviam havia uma ladeira íngreme, inclinada, cheia de pedras e calhaus. Uma ladeira daquelas que a gente só sobe ou desce quando não pode deixar de ser.
Um dia, um dos homens ia a subir a ladeira quando o outro vinha a descê-la. Como é natural, encontraram-se a meio. Bem… A meio, a meio, exactamente a meio, não tenho a certeza se foi. Talvez tenha sido um bocadinho mais para cima ou um bocadinho mais para baixo. Para a nossa história esse pormenor não tem grande importância e, por isso, vamos fazer de conta que foi a meio.
Mais ou menos a meio da ladeira, os dois homens encontraram-se, pararam à frente um do outro e desataram a discutir. Um ia a subir e, por isso, achava que a ladeira era uma subida. O outro vinha a descer e, pelo contrário, garantia que se tratava de uma descida.
Sem chegar a acordo, sentaram-se ali mesmo no chão para tirar a questão a limpo. Quem os conhecesse, sabendo que eram homens de palavra fácil, capazes de inventar sólidas razões e grandes argumentos, logo via que aquela discussão ia demorar. E demorou.
Passaram-se sete dias e sete noites e a discussão não parava. Veio a Lua e foi-se o Sol, veio o Sol e foi-se a Lua e os dois homens a discutir. Nem o frio, nem o calor, nem a chuva, os distraíram. Continuavam na mesma. Para um, aquela ladeira era uma subida porque subia de baixo para cima. Para o outro, era uma descida porque descia de cima para baixo.
A discussão continuou e continuou. À sétima noite começou a soprar um vento muito forte. Um vento tão forte e violento que arrancava terras, árvores e pedras e as atirava de um sítio para outro. Um vento daqueles capazes de trabalhar lentamente, séculos e séculos a fio, para mudar a face da Terra e transformar montes em covas fundas e buracos de meter medo nas mais altas montanhas.
O tempo passou. O vento mexeu com tudo. Mudou a paisagem. Transformou o mundo. Só os dois homens continuavam sentados no meio da ladeira sem darem por nada do que acontecia à sua volta. Estavam tão preocupados, cada um, em ganhar a discussão, que não sentiram nem a chuva na pele, nem o frio nos ossos, nem o sol na moleirinha.
Passaram-se sete mil noites e sete mil dias, os homens a discutir e o vento a trabalhar.
A ladeira, a pouco e pouco, ia ficando diferente. A parte mais alta cada vez menos alta, e a parte mais baixa a crescer sem parar à custa de entulho, areia, calhaus e pedrinhas que a tornavam cada vez menos baixa.
Um belo dia, a parte de baixo e a parte de cima da ladeira ficaram iguais, da mesma altura e, portanto, a ladeira desapareceu. A terra ficou direitinha, lisa, uma planície que se estendia até perder de vista.
O vento, sem mais nada que fazer ali, foi trabalhar para outro lado. Os dois homens que, como eu já disse, eram muito teimosos, continuavam a discutir se a ladeira era uma subida que se descia ou uma descida que se subia.
A certa altura, olharam em volta, para um lado e para outro, até onde a vista podia alcançar. Aperceberam-se então que a ladeira tinha desaparecido. Olharam um para o outro, levantaram-se, cumprimentaram-se e, cheios de orgulho, afastaram-se cada um em sua direcção, ambos seguros de que tinham ganho a discussão.
José Fanha
A noite em que a noite não chegou
Porto, Campo das Letras, 2001
A JANELA E A MONTANHA
A janela abria para a frente, para fora, para o ar lavado da montanha.
Quem dormisse naquele quarto, ao saltar da cama, de manhã, abria a janela de dois batentes como se estivesse a respirar fundo. Enchia os pulmões de ar e os olhos de claridade. Era o primeiro exercício de ginástica.
Podia ficar por aqui, de cotovelos sobre o parapeito, a apreciar a paisagem. Ou podia voltar para dentro, com um pequeno arrepio de prazer.
A janela, que abria para fora, até nem se importava que voltassem a fechá-la. Tinha cumprido a sua missão. Dera, de longe, um primeiro abraço à montanha. Não pedia mais.
Eram muito amigas a montanha e a janela. Não podiam passar uma sem a outra. A janela emoldurava a montanha, por sinal que o seu lado mais fotogénico. A montanha sentia-se protegida por aquela janela prazenteira, sorridente, aberta de par em par.
Mas aconteceu que a estalagem, a que pertencia a janela, fechou. De vez. Falta de clientes, cansaço do dono ou fosse do que fosse, fechou. Portas e janelas trancadas.
A montanha olhava para a janela e sentia saudades. Cá em baixo, no vale, ouviam-na suspirar e diziam:
— É o vento da montanha.
Mas não era. Até a paisagem entristecia.
Da janela e do seu sentir não podemos saber. Pois se estava fechada. Só aberta, toda aberta de alegria é que ela era uma verdadeira janela.
A montanha convocou os ventos para que eles abrissem a sua janela, sem a qual nem as manhãs de orvalho apeteciam nem as tardes rubras do pôr-do-sol nem as noites alucinadas pela Lua Cheia.
— Para quê, para quê, se não tenho a minha janela a ver-me? — murmurava a montanha, inconsolável.
Mas os vendavais da montanha por mais esforços que fizessem, por mais empurrões que dessem não conseguiam abrir a janela. Impossível. Ela só abria para fora.
Desistiram. Não desistiu a montanha, que chorou, noites e noites a fio, a perda da sua janela.
Depois da época das chuvas, voltou o bom tempo. Romperam os malmequeres, no jardim abandonado da estalagem. A montanha cobriu-se de veludo roxo, que era uma maciça penugem de pétalas sobre o chão de urze. Começou a cheirar a rosmaninho.
— Parece que vão reabrir a estalagem, com nova gerência — contava-se, no vale.
E assim aconteceu. Quando a janela abriu as suas duas portadas, a abarcar a montanha, fez-se um grande silêncio.
— Olá, montanha — disse a janela.
— Olá, janela — disse a montanha.
Como se ainda ontem se tivessem visto… Mas ficaram que tempos, que tempos, a olhar uma para a outra.
António Torrado
O coração das coisas
Porto, Edições Asa, 2004

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