"As minhas palavras têm memórias ____________das palavras com que me penso, e é sempre tenso _________o momento do mistério inquietante de me escrever"
sexta-feira, 1 de setembro de 2017
Sobre STTAU MONTEIRO, o autor de "FELIZMENTE, HÁ LUAR"e sobre Bernardo Santareno, o autor de "O JUDEU"
Bernardo Santareno Um dramaturgo esquecido
INÊS NADAIS
29/08/2005 - 00:00
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O autor de O Judeu é um dos mais originais dramaturgos portugueses, mas continua insuficientemente representado
Bernardo Santareno escrevia muitas vezes a pensar que as suas peças nunca seriam representadas. O tempo deu-lhe uma certa razão: a obra daquele que foi um dos mais originais dramaturgos portugueses do século XX está editada - a Editorial Caminho reuniu-a em quatro volumes - mas permanece insuficientemente representada. E está também insuficientemente lida, desde que Felizmente Há Luar, de Luís de Sttau Monteiro, substituiu O Judeu como texto de leitura obrigatória no ensino secundário. Talvez por isso não haja hoje, dia em que se cumprem 25 anos após a morte do autor (Santarém, 1920-Lisboa, 1980), qualquer manifestação a assinalar a efeméride.
"Não está na moda, não. O Bernardo Santareno começou no castigo, aliás esteve no castigo durante muito tempo, por causa da censura. Chegou a ser bastante representado na década de 60, mas foi um fogacho. Vai demorar algum tempo até ser redescoberto por gente mais nova, sem partis-pris. Por enquanto, existe alguma má vontade", diz Fernanda Lapa, actriz e directora artística da companhia Escola de Mulheres, que recentemente produziu Bernardo Bernarda, uma montagem de textos do dramaturgo.
Excepção feita a esta e a algumas produções da Karnart - que estreou em 2002 uma encenação de Luís Castro para António Marinheiro -, o cenário é mesmo de omissão, lamenta o "grande amigo e grande admirador" Luís Francisco Rebello: "Há um relativo silêncio sobre a obra do Bernardo - e o Bernardo era uma vocação irreprimível de dramaturgo, todo o teatro que fez exigia o palco. Foi-lhe recusado durante a ditadura e continua a ser-lhe recusado, agora mais incompreensivelmente, em democracia. É a triste sina do teatro português: os textos vivem apenas a vida efémera das primeiras representações".
O caso de Santareno (pseudónimo de António Martinho do Rosário) é particular: textos como O Inferno (1967) ou O Punho (1974), por exemplo, nunca foram encenados, apesar da invulgar actualidade dos universos abordados. As razões são também de ordem prática, reconhece José Oliveira Barata, catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e um dos maiores especialistas na obra de Bernardo Santareno: são peças para grandes elencos, relativamente fora do alcance da maioria das micro-estruturas de produção teatral. "Por causa disso, o Santareno não teve a possibilidade de testar as suas obras em palco. Resultado: são muito retóricas, muito prolixas, têm uma ganga literária que por vezes compromete a sua eficácia dramática".
Nada que ponha em causa o seu "absoluto pioneirismo" em temáticas como a marginalidade e a homossexualidade, esta abordada desde logo, em obras precoces como O Bailarino e A Excomungada (1957), ressalva Oliveira Barata, que vê em Santareno um "pivô" do difícil diálogo entre a dramaturgia portuguesa e a dramaturgia europeia nos anos do Estado Novo.
"Santareno está em contacto com o existencialismo de Sartre, mas também com o Garcia Lorca, com Ionesco e, fundamentalmente, com um autor-chave que é Jean Genet. Mas há uma coisa que sabe fazer, sobretudo numa primeira fase mais ligada ao catolicismo progressista, que é meter as mãos no mais profundo da alma portuguesa e mexer e remexer", diz o especialista.
Numa segunda fase, mais política - "que coincide com a sua vinculação clara à esquerda" -, Santareno seria também o responsável pelas "primeiras entradas de Brecht no teatro português". Fê-lo com O Judeu, "peça que toda a gente considera a primeira obra didáctica brechtiana em Portugal" e que marca, para Oliveira Barata, toda uma geração do teatro universitário.
É, de resto, mais na temática do que na forma que convém procurar a actualidade e a originalidade deste autor, frisa Luís Francisco Rebello: "A grande novidade eram as problemáticas que ele introduzia: o ataque às superstições, a violência dos conflitos - ideológicos, mas também sexuais". Maria Helena Serôdio, investigadora do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, concorda: "Alguns dos aspectos da sua riqueza verbal poderão estar desajustados em relação ao modo de falar em teatro. Mas encontrar uma boa dramaturgia que reduza alguns excessos barrocos da linguagem do Bernardo Santareno não é trair a sua obra. O Luís Castro é, aliás, um jovem autor que se tem aproximado do teatro de Santareno sem ficar cativo dessa linguagem".
Chegar ao fundo
da nossa identidade
"O que é especial é o modo como ele pressente as questões antes de elas estarem na moda: a homossexualidade, por exemplo, mas também o incesto, ou o fim da reforma agrária, que ele aborda em O Punho. A forma é esplendorosa, embora excessiva - mas ele era excessivo, e a certa altura começou a habituar-se à ideia de que as suas peças nunca seriam representadas, por causa da censura. Quando chegou o 25 de Abril, tinha deixado de escrever", acrescenta Fernanda Lapa. Ironicamente, Português, Escritor, 45 Anos de Idade (1974), o drama em que Santareno descarrega essas décadas de desilusão, seria o primeiro original português a estrear-se em teatro depois da revolução.
A sua singularidade, sublinha Maria Helena Serôdio, faz dele "um dos grandes vultos da dramaturgia portuguesa do século XX", e por duas razões fundamentais: "Soube criar universos trágicos extremamente consistentes e soube auscultar as condições sociais, políticas, da existência da tragédia, sem perder de vista o que era ser português. Depois do 25 de Abril, teve a capacidade de voltar a escrever, e ao fazê-lo colocava perguntas que continuavam a ser pertinentes". Foi "ao fundo da nossa identidade rural, àquilo a que hoje se chama o Portugal profundo", mas faltou-lhe "o reconhecimento das tábuas do palco, o que é pena porque ele gostava que os encenadores se apropriassem dos textos dele", nota Oliveira Barata.
"Antes do Bernardo Bernarda nunca tinha feito nada do Bernardo Santareno. Talvez por respeito à obra dele, nunca me atrevi", confessa Fernanda Lapa. Conheceu a sua figura de homossexual discreto, de óculos grossos e cigarro ao canto da boca quando andava no sétimo ano do liceu e depois trabalhou com ele na Fundação Chaine, onde Santareno, formado em psiquiatria, fazia reabilitação de cegos e amblíopes. "Fui ao instituto de orientação profissional porque não sabia o que queria fazer da vida. Fiz os testes todos e no final apareceu-me um homem alto, quarentão, muito feio, com muitos dentes, muito charmoso, que eu reconheci imediatamente. É claro que ele me disse logo que o teatro é que era. Até à morte dele, nunca mais nos separámos".
Quando morreu, Santareno não deixou propriamente continuadores, diz Luís Francisco Rebello: "O Bernardo era uma individualidade tão poderosa, tão original que não dá lugar a discípulos. Aquilo era ele - e ele exprimia-se inteiramente naquele teatro".
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