"As minhas palavras têm memórias ____________das palavras com que me penso, e é sempre tenso _________o momento do mistério inquietante de me escrever"
sábado, 19 de agosto de 2017
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"A LADEIRA
Era uma vez dois homens. Um era alto, outro baixo. Um era gordo, outro magro. Um moreno, o outro ruivo. Um tinha a voz muito grossa e outro uma borbulha na ponta do nariz. Um chamava-se Manuel Francisco e o outro Francisco Manuel. E muito mais coisas poderia dizer de cada um deles. Mas, o fundamental, é que eram muito diferentes um do outro. Só numa coisa se assemelhavam: ambos eram tremendamente teimosos.
Na terra onde viviam havia uma ladeira íngreme, inclinada, cheia de pedras e calhaus. Uma ladeira daquelas que a gente só sobe ou desce quando não pode deixar de ser.
Um dia, um dos homens ia a subir a ladeira quando o outro vinha a descê-la. Como é natural, encontraram-se a meio. Bem… A meio, a meio, exactamente a meio, não tenho a certeza se foi. Talvez tenha sido um bocadinho mais para cima ou um bocadinho mais para baixo. Para a nossa história esse pormenor não tem grande importância e, por isso, vamos fazer de conta que foi a meio.
Mais ou menos a meio da ladeira, os dois homens encontraram-se, pararam à frente um do outro e desataram a discutir. Um ia a subir e, por isso, achava que a ladeira era uma subida. O outro vinha a descer e, pelo contrário, garantia que se tratava de uma descida.
Sem chegar a acordo, sentaram-se ali mesmo no chão para tirar a questão a limpo. Quem os conhecesse, sabendo que eram homens de palavra fácil, capazes de inventar sólidas razões e grandes argumentos, logo via que aquela discussão ia demorar. E demorou.
Passaram-se sete dias e sete noites e a discussão não parava. Veio a Lua e foi-se o Sol, veio o Sol e foi-se a Lua e os dois homens a discutir. Nem o frio, nem o calor, nem a chuva, os distraíram. Continuavam na mesma. Para um, aquela ladeira era uma subida porque subia de baixo para cima. Para o outro, era uma descida porque descia de cima para baixo.
A discussão continuou e continuou. À sétima noite começou a soprar um vento muito forte. Um vento tão forte e violento que arrancava terras, árvores e pedras e as atirava de um sítio para outro. Um vento daqueles capazes de trabalhar lentamente, séculos e séculos a fio, para mudar a face da Terra e transformar montes em covas fundas e buracos de meter medo nas mais altas montanhas.
O tempo passou. O vento mexeu com tudo. Mudou a paisagem. Transformou o mundo. Só os dois homens continuavam sentados no meio da ladeira sem darem por nada do que acontecia à sua volta. Estavam tão preocupados, cada um, em ganhar a discussão, que não sentiram nem a chuva na pele, nem o frio nos ossos, nem o sol na moleirinha.
Passaram-se sete mil noites e sete mil dias, os homens a discutir e o vento a trabalhar.
A ladeira, a pouco e pouco, ia ficando diferente. A parte mais alta cada vez menos alta, e a parte mais baixa a crescer sem parar à custa de entulho, areia, calhaus e pedrinhas que a tornavam cada vez menos baixa.
Um belo dia, a parte de baixo e a parte de cima da ladeira ficaram iguais, da mesma altura e, portanto, a ladeira desapareceu. A terra ficou direitinha, lisa, uma planície que se estendia até perder de vista.
O vento, sem mais nada que fazer ali, foi trabalhar para outro lado. Os dois homens que, como eu já disse, eram muito teimosos, continuavam a discutir se a ladeira era uma subida que se descia ou uma descida que se subia.
A certa altura, olharam em volta, para um lado e para outro, até onde a vista podia alcançar. Aperceberam-se então que a ladeira tinha desaparecido. Olharam um para o outro, levantaram-se, cumprimentaram-se e, cheios de orgulho, afastaram-se cada um em sua direcção, ambos seguros de que tinham ganho a discussão.
José Fanha
A noite em que a noite não chegou
Porto, Campo das Letras, 2001
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