quarta-feira, 27 de abril de 2016

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Quando Sá-Carneiro mostrou o caminho a Pessoa


LUÍS MIGUEL QUEIRÓS

26/04/2016 - 07:12


No deve-e-haver entre as duas principais figuras do primeiro modernismo português, o poeta deIndícios de Ouro talvez não tenha afinal dado menos do que recebeu. O documentário com que a RTP2 assinala o centenário da morte do poeta vem reequilibrar as contas.



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Um século depois do seu suicídio em Paris, aos 25 anos, Mário de Sá-Carneiro ainda não se libertou inteiramente da gigantesca sombra de Fernando Pessoa, continuando muitas vezes a ser visto como o amigo extravagante do grande poeta universal, uma espécie de número dois do nosso primeiro modernismo. No entanto, se o poeta de Indícios de Oiro foi o primeiro a reconhecer a supremacia artística de Pessoa, é bem possível que nessa amizade tão criativamente fecunda para ambos, a dívida do poeta dos heterónimos a Sá-Carneiro tenho sido ainda mais decisiva do que a inversa.
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Um dos méritos do documentário O Estranho Caso do Mário de Sá-Carneiro, com realização de Paulo Seabra e argumento de José Mendes, que a RTP2 estreia esta terça-feira às 23h20, é o de vir reequilibrar, através dos comentários de um bem escolhido painel de especialistas - que inclui, entre outros, Eduardo Lourenço, Fernando Cabral Martins, Richard Zenith e Jeronimo Pizarro – esse deve-e-haver literário entre os dois principais obreiros do tsunami modernista de Orpheu. Sim, Pessoa estimulou o ficcionista e dramaturgo Mário de Sá-Carneiro a tornar-se poeta, mas este, que no seu privilegiado posto de observação parisiense assistia à explosão do futurismo e do cubismo, convenceu o amigo de que a vanguarda era para levar a sério. E sem esse clique, talvez a obra de Fernando Pessoa e o seu próprio desdobramento heteronímico tivessem seguido outros caminhos.

Autor de Estética, Propaganda e Utopia no Portugal de António Ferro(2012) e de vários outros documentários, Paulo Seabra diz ter enfrentado desta vez uma limitação que não sentira em trabalhos anteriores: a de ter “pouca matéria-prima”. A vida de Sá-Carneiro foi curta – ainda não tinha feito 26 anos quando se matou –, e o que havia, em termos documentais, era um conjunto de fotografias, as cartas do autor a Fernando Pessoa, outra correspondência com familiares e amigos e, claro, a sua obra literária.

Esta relativa escassez permitiu ao documentário dar espaço e tempo à obra, com leituras, por diversas vozes, de poemas marcantes no percurso de Sá-Carneiro, às vezes acompanhadas de uma criativa e divertida selecção de imagens que quase as transforma em pequenos videoclips, ou curtas-metragens autonomizáveis.

Uma das cenas mais fortes do filme é a expressiva leitura de Eduardo Lourenço do poema Feminina, no qual Sá-Carneiro escreve: “(…) Eu queria ser mulher para ter muitos amantes/ E enganá-los a todos – mesmo ao predilecto –/ Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,/ Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes…”. No início do documentário, é já Lourenço que dá o mote para uma série de comentadores que depois irão sublinhar a intensidade de Sá-Carneiro, também sugerida visualmente através das imagens de uma fornalha ardente. “É aquele que levou o mito da poesia mais longe, e morreu em função desse mito”, diz o ensaísta, observando que Sá-Carneiro “não se define por nada”, se não por encarnar a ideia da “poesia como quinta-essência da realidade humana”.

Desenvolvendo em conversa com o PÚBLICO o que defende em várias intervenções ao longo do filme, Fernando Cabral Martins nota que, ao contrário de Pessoa, “que é um homem de projectos, de vastas arquitecturas mentais, Sá-Carneiro é força, energia, intuição”. E quando essas duas personalidades tão distintas se encontram o efeito é explosivo. “A relação entre eles é muito forte, e foi naquele ricochete, naquela ponte que estabeleceram um para o outro, que começaram a passar-se coisas que só a existência desses dois pólos permitiu que se desencadeassem”, diz Cabral Martins, responsável por várias edições da poesia e prosa de Sá-Carneiro, coordenador do Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Portuguêse autor de O Modernismo em Mário de Sá-Carneiro (1997).

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