A analítica existencial de Heidegger
Antes de tudo, é preciso lembrar que Heidegger recoloca como problema filosófico fundamental a questão do sentido do ser. Com essa questão, ele retoma toda a tradição filosófica ocidental sob a ótica do encobrimento de que a mesma foi vítima ao longo do tempo. Mas, ao perguntar pelo sentido do ser, introduz também a questão do sentido do ente que se pergunta pelo sentido do ser em geral. Metodologicamente, a investigação ontológica terá de passar pelo esclarecimento de um ente especial, o ser humano agora chamado Dasein (Ser-aí). Utilizando o método fenomenológico, aperfeiçoando-o, parte para a análise da existência humana, para a descrição do fenômeno humano na sua faticidade e radicalidade. Isso acontece, sobretudo, em sua obra principal Ser e Tempo, publicada em 1927, onde reúne sistematicamente o trabalho de muitos anos de estudo, aulas, seminários e meditação pessoal.
Esse caminho da analítica existencial (análise do Dasein) quis conquistar um solo adequado tanto para a pergunta, como para a resposta da questão do ser a partir do lugar de onde ela brota: no ente chamado Dasein. Esse trabalho foi empreendido no sentido de conquistar a constituição originária do Dasein fático, desde seus fundamentos, enquanto o ente que compreende o ser e que, portanto, é condição de algo assim como mundo, desvelamento do mundo. O problema a ser mostrado é que esse desvelamento, o mundo desvelado, passa a ser vítima de encobrimentos ao longo trajeto da ontologia na história ocidental. Neste movimento da Metafísica, o Dasein acabou compreendendo a si mesmo a partir do modo de ser dos outros entes. A diferença entre o modo de ser humano e o modo de ser dos objetos foi encoberta na Metafísica. Também o homem foi tratado e compreendido a partir de uma determinação objetificadora. Com isso, foi ignorado seu caráter histórico, seu ser no tempo, sua finitude.
Heidegger elabora então a analítica existencial, uma descrição do ser humano que se afasta dos modelos objetificadores das ciências e da própria filosofia. Ao invés de conceitos, fala de existenciais, mais adequados à realidade deste ente. Ele mostrou, através de uma hermenêutica do Dasein, como ele se compreende no mundo, a princípio e em geral, a partir dos entes com que lida e, em segundo lugar, a partir do impessoal e das possibilidades herdadas. Na segunda seção de Ser e Tempo, a realidade humana é analisada a partir do tempo autêntico, que é chamado de temporalidade, e que permite o desencobrimento do acontecer originário do Dasein. A partir de uma compreensão de tempo mais originária (temporalidade), a investigação deverá liberar o Dasein no seu ser próprio enquanto cuidado para, a partir dessa transparência de si mesmo, recolocar e investigar o sentido do ser, a condição de possibilidade, o fundamento do nosso modo ocidental de pensar e lidar com os objetos.
Com isso, Heidegger quer resgatar a existência própria, mas tem de passar antes pelo modo como cotidianamente o Dasein entende a si mesmo. Segundo ele, no seu lidar cotidiano com os entes no mundo, o Dasein acaba, de início e na maioria das vezes, extraviando-se das suas possibilidades próprias e compreendendo-se a partir desse seu envolvimento. Como os entes são compreendidos a partir do presente, a partir da estabilidade, também o Dasein perde a si mesmo e compreende-se a partir do tempo enquanto presente.
Mas o Dasein é também ser-no-mundo com outros entes que compartilham com ele o mesmo modo de ser. Na relação com eles, pode abdicar das suas possibilidades ou assumir a si mesmo propriamente. No entanto, de início e na maior parte das vezes, encontra-se submetido ao império do impessoal ('das Man'). O falatório, a curiosidade e a ambiguidade garantem que tudo sempre já esteja previamente decidido, escolhido e posto na normalidade. Com isso, o Dasein individual vive, age, escolhe, orienta-se a partir daquilo que a tradição tornou possível, ou seja, encontra-se decaído, jogado na existência, num sentido já previamente aberto. Mas não tem consciência desse seu estado.
O impessoal tem a pretensão de nutrir e dirigir a vida e, dessa forma, procura para o Dasein "uma tranquilização para a qual tudo está 'em perfeita ordem' e todas as portas estão abertas" (Heidegger, 1998, p. 200). Esse modo de ser-no-mundo é tentador, tranquilizante e também alienante. A decaída no impessoal não tem uma conotação negativa, de tal modo que precisasse ser eliminada, mas ela corresponde ao modo como de início e, na maioria das vezes, o ser humano é. A decaída "desvela uma estrutura ontológica essencial do Dasein mesmo, estrutura esta que, longe de determinar seu lado noturno, caracteriza na cotidianidade a totalidade de seus dias" (Heidegger, 1998, p. 201).
Para poder conquistar a propriedade, a partir da originária condição da decaída, Heidegger propõe a disposição afetiva da angústia. Ela tem o poder de dissipar o sentido que tudo organiza e mantém em ordem. Quando o Dasein está angustiado, tudo perde para ele a importância e significado. Ele é acossado, assim, pelo "nada", que lhe revela exatamente o fato de que "existe" e tem sobre si a responsabilidade do seu próprio ser. Ela abre para a finitude, para a condição de ser-para-a-morte e, assim, impede que ele se refugie na ocupação com os entes. Torna-se possível o encontro com as possibilidades mais próprias do Dasein. A angústia revela-se como o existencial capaz de reconduzir o homem a si mesmo. Assumindo a finitude e a ausência de fundamento revelados pela angústia, o Dasein pode tomar o destino nas próprias mãos.
Stein (2002) nos diz que a estrutura fundamental do Dasein é ser-no-mundo e o seu sentido é a temporalidade. Isso significa que ele é histórico e, enquanto inserido em uma história, é o que já foi e se descobre em uma tradição.
A tradição histórica pode levar o homem a se compreender somente a partir do seu passado, a esquecer sua verdadeira historicidade, a não se preocupar mais com as suas verdadeiras raízes. Assim ela pode esconder as possibilidades concretas do ser-aí. Pode barrar-lhe o acesso às fontes originais, onde as categorias e os conceitos tradicionais foram bebidos .... A tradição desenraíza o ser-aí de sua historicidade e ele passa a se preocupar apenas com os tipos, orientações e pontos de vista filosóficos possíveis, para, desse modo, dissimular seu desenraizamento. (Stein, 2002, p. 65).
Mas também sabemos que ele não está determinado irremediavelmente por ela, pois tem a possibilidade de assumir sua própria existência, fazendo escolhas, responsabilizando-se pelo seu projeto, destinando-se propriamente, sendo autêntico. O Dasein é histórico, escolhe a partir de seu passado, de possibilidades herdadas, mas também pode, a partir do porvir, de suas possibilidades, fazer-se segundo um projeto próprio, interpelado pela sua consciência e seguindo-a através de uma resolução precursora.
Em tudo isso que mostramos é possível perceber que, como diz Stein (2003), Heidegger se deu conta do velamento radical que aconteceu com a existência e quer impedir que essa se dissolva no processo tecnocrático e garantir que a razão não se instrumentalize completamente e se perca a visão do todo. Quis ele salvar um espaço essencial para o humano e libertar o homem e a obra humana de modelos cosmológicos superados. Esse empreendimento Heidegger deixa claro em Ser e Tempo, e leva adiante até o final de sua vida em questões que discute profundamente, como é o caso da técnica e do acontecer. Uma das primeiras possibilidades que então se abrem com o pensamento de Heidegger é a garantia de um espaço humano para o Dasein. Além disso, com uma linguagem que busca se afastar da objetivação, possibilita um acesso originário aos fenômenos, tanto humanos, como outros.""...
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