domingo, 29 de junho de 2014

Sobre Jacinto Prado Coelho(1920-1984), grande ensaísta português, excerto de um texto, através de cvc-camões.pt

















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"Até 1984 não deixou nunca de se dedicar a tarefas que demonstraram sempre a sua placidez e tolerância aliadas a uma exigência de trabalho aturado e rigoroso, um lúcido e visível escrúpulo no dar a conhecer uma investigação variada que tanto privilegiava autores maiores (Camões, Garrett, Cesário, por exemplo) como autores ditos menores (João Xavier de Matos em particular e o sec. XVIII português em geral), tanto quanto autores quase desconhecidos (Matias Aires, Francisco Dias Gomes). Não há, pode dizer-se, autor ou época da Literatura Portuguesa que desconhecesse. Por isso ninguém mais capaz de harmoniosamente aliar o ensino na Universidade com atividades congéneres. Publicou textos, pouco acessíveis ao grande público, de autores do sec. XVIII, XIX e XX (cf. Bibliografia) que antecedia de cuidadosa apresentação e estudo.
Pertenceu à Sociedade Portuguesa de Escritores, de que foi Presidente até ao seu encerramento em 1965; foi codirector, primeiro, e diretor, depois, da Revista Colóquio/ Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian, membro de várias Academias como a Academia das Ciências de que foi presidente e vice-presidente, Academia Brasileira de Letras, a Real Academia Galega, e Sociedades como a Hispanic Society, a Associação Internacional de Críticos Literários de que foi vice-presidente (e presidente do Centro Português da mesma Associação). Estas atividades não foram incompatíveis com o ingente trabalho de execução (encarregou-se de inúmeras e múltiplas entradas), coordenação e publicação do Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e Brasileira, com reedições várias entre 1960 e 83, trabalho sempre em aberto, pois título e número de volumes foram, o primeiro, ligeiramente alterado e os segundos substancialmente aumentados.

Não admira que, com tão intenso e constante labor, tivesse assumido desde muito cedo a existência e necessidade da literatura como uma realidade imperiosa na sua evidência estética, ainda que multímoda e complexa. Se começou com um trabalho intitulado A Educação do Sentimento Poético (1944), o ensino da literatura não deu explicitamente azo a muitos trabalhos, mas condicionou, como pressuposto, todos os seus estudos. Privilegiou uma escrita que demonstrava, pela sua clareza, uma preocupação didática e mostrou assim que a pertinente atenção ao valor da literatura, era não só um serviço de justiça à arte a que se dedicava, mas uma função pedagógica em vista ao equilíbrio que lhe competia desenvolver. Com efeito, no capítulo de Ao Contrário de Penélope, intitulado “Como Ensinar Literatura”, desenvolve um pensamento que não deixa lugar a dúvidas quanto à sua concepção de literatura e ao modo como sempre encarou a sua responsabilidade docente: “Ler colectivamente (em diálogo com a obra literária, em diálogo de leitor com outros leitores) é, com efeito, além de prazer estético, um modo apaixonante de conhecimento [...] Não há, suponho, disciplina mais formativa que a do ensino da literatura [...] Saber idiomático, experiência prática e vital, sensibilidade, gosto, capacidade de ver, fantasia, espírito crítico – a tudo isto faz apelo a obra literária, tudo isto o seu estudo mobiliza. [...] A literatura não se faz para ensinar: é a reflexão sobre a literatura que nos ensina”. Elucidativos excertos que vêm coroar conceitos e práticas desenvolvidas durante toda uma vida.

Apesar de o sec. XX ter sido atravessado por inúmeras controvérsias acerca da literatura e das metodologias mais convenientes ao seu estudo, de posse desse conhecimento, J.P.C. manteve princípos e conceitos que orientaram o seu trabalho: a literatura como produção estética em forma de linguagem (sem que isso implicasse aderir a meros formalismos); a literatura como organismo desenvolvido em sistemas - os géneros, por exemplo - sem que isso implicasse a redução da leitura a esquemas sistemáticos; a possibilidade de múltiplas aproximações à literatura e portanto a aceitação de metodologias diversas não exclusivas.

Classificava a sua leitura crítica do texto literário como “leitura imanente” (termo comum no sec. XX em teorias advogadas quer pela Estilística, quer pelo, assim designado, New Criticism, quer pelo Formalismo Russo) o que correspondia a uma consideração da obra literária enquanto tal, e não enquanto documento social ou biográfico, embora considerasse que o conhecimento do autor, da sua biografia, do seu enquadramento cultural, ajudava a essa leitura. Na apreciação e análise dos textos literários reconhecia (como quase inevitável) a qualidade de constituirem um todo coerente e uno. A propósito de Fernando Pessoa, por exemplo, afirmava no prefácio que antecede o estudo que lhe dedicou: “a própria diversidade [...] vale como expressão dramática de identidade”.[...] “expressão dramática” é já em si uma forma de expressão, implica uma representação cénica, a certeza de que a expressão literária (ou poesia) não existe senão em forma de”. Por outras palavras, a coerência e unidade da obra com valor estético não se opõe a uma ambiguidade e fluidez significativa. Ou ainda, a complexidade da literatura é inerente à sua própria condição estética de ser linguagem; sem que, no entanto, essa condição obrigue a um absoluto caráter intransitivo da literatura – o seu ensimesmamento – ou se torne o caminho para uma leitura desconstrutiva que o seu tempo não chegou a conhecer como prática metodológica.

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