segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Do nosso escritor/poeta José Régio














De José Régio (1901-1969): in Net

"«O JOGO DA CABRA CEGA»

Por José Régio





O gosto de vaguear de noite, a horas mortas, era agora o mais querido dos meus prazeres melancólicos. Desde muito novo desenvolvo reais qualidades inventivas em tal género de prazeres: Mas qualidades que sobretudo se revelam no pormenor ou na maneira. De facto, o prazer de errar pela noite é comum a várias criaturas. Sempre desconfiei de misteriosas afinidades entre todas, por mais que as separem os gostos, os vícios, as aparências, a idade, a condição social. Não obstante tal desconfiança, que não posso bem corroborar com exemplos, eu julgava-me então único. Noites havia, sim, em que simplesmente apreciava a noite: O aspecto de mascaradas, ou desmascaradas, que certas casas têm a certas horas; o silêncio das ruas e a sonoridade das pedras; os vultos que se esgueiram, ou esperam às esquinas, ou se cosem às paredes, ou nos roçam o ombro, ou nos pedem lume, ou falam alto; e depois esboços de paisagens, ou transfigurações inesperadas de coisas que à luz do dia são banais. Porém essas noites não eram as minhas. Estas começavam sempre mais tarde, exigiam-me só, e requeriam disposições extraordinárias. Eu andava então horas e horas entregue a uma espécie de devassidão — não acho outra palavra — durante a qual vivia, por assim dizer, todo o meu passado e todo o meu futuro. Depois de ter corrido a cidade, recomeçava: Preferia os becos, as sombras, os cantos e as escadinhas escusas. E envolvia no mesmo ódio furibundo as luzes dos cafés e os raros transeuntes normais que recolhiam. Era pela antemanhã que o meu delírio atingia o auge. O cansaço atirava-me então contra qualquer muro, exausto como um pobre animal vencido. E na lúcida consciência da minha humilhação, da minha fraqueza, e da minha loucura, saboreava não sei que travor de triunfo. Uma espécie de libertação me sobrevinha. Eu experimentava uma vaga satisfação de destino cumprido! Arrastava-me até casa, subia às apalpadelas, despia-me rezando fragmentos de velhas orações; e adormecia dum sono que parecia não dever ter fim. Mas outras noites, cansava-me: Depois de ter começado as minhas deambulações onanísticas — sentia que me seria impossível prosseguir. Resolvia, então, renunciar, e acabar a noite como qualquer outro. (de: Capítulo I: O gosto de vaguear de noite...)"

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