"As minhas palavras têm memórias ____________das palavras com que me penso, e é sempre tenso _________o momento do mistério inquietante de me escrever"
segunda-feira, 5 de junho de 2017
ARTIGO MUITO OPORTUNO DE PACHECO PEREIRA
A máquina da ignorância ao serviço da política que não ousa dizer o nome
(José Pacheco Pereira, in Público, 04/06/2016)
Pacheco Pereira
Muitas das polémicas políticas usando a história que se estão a dar em Portugal estão cheias de ignorância presumida.
Um dos efeitos perversos da cultura da Internet é a desvalorização do saber, do conhecimento, do estudo. Há muita gente que fica irritada quando se lhes toca no deslumbramento tecnológico e também, por arrasto, no direito de dizer alto, que é o que significa “publicar” na Internet, todas as asneiras possíveis visto que “todos têm direito à sua opinião”.
Acham que criticar isto é “presunçoso”? Então acabou a ignorância? Lá porque cada um pode colocar o que quer na Internet isso dá-lhe um atestado de sabedoria? Não, é uma doença dos tempos modernos e está-se agravar principalmente nos mais jovens que obtêm na rede quase toda a informação e não tem literacias para a mediar. A “democracia” das “redes sociais” é uma forma de populismo moderno.
Eu costumava chumbar os alunos de filosofia que, para esconder infantilmente a sua ignorância, diziam que também tinham uma “opinião pessoal” sobre Kant. Ai tem? Mas que sorte, é que eu não tenho e a esmagadora maioria das pessoas letradas do mundo também não tem, incluindo 99% dos professores de filosofia e a maioria absoluta dos especialistas em Kant, pela simples razão que ter uma “opinião pessoal”, que não seja uma repetição, ou seja, que seja “pessoal”, exige muito estudo, muito conhecimento de Kant, e muita criatividade filosófica. Se não é do domínio do génio filosófico, fica perto. Não é Habermas quem quer.
Mas a Internet está cheia disto, gente que escreve sobre um livro começando por dizer que não o leu, que escreve sobre cinema porque viu uns filmes, que se torna crítico literário porque “também pode dizer o que quiser”, ou melhor, “que tem o direito de dizer o que quiser” e só os passadistas de duvidosa democraticidade é que não querem que este “direito seja de todos”. E depois dizem “habituem-se que o mundo mudou”. Sim o mundo mudou, mas ninguém tem obrigação de aturar este ruído das “redes sociais” dos comentários, do “todos temos direito a falar, mesmo que não tenhamos nada para dizer”: “é a minha opinião pessoal sobre Kant, embora nunca o tenha lido e, se me criticam, berro que é censura e elitismo e nostalgia do mundo em que só os “sábios” (dito com desprezo) podiam falar…”.
Era só uma questão de tempo até que este tipo de “escola” chegasse à política. Muitas das polémicas políticas usando a história que se estão a dar em Portugal estão cheias deste tipo de ignorância presumida, e louvo quem se dá ao trabalho de os tomar a sério naquilo que dizem, embora a intencionalidade política já seja mais séria e justifique maior discussão. O problema é político e tem a ver com a emergência de uma direita agressiva e muito ignorante, que acha que está a escancarar uma porta ideológica que a esquerda tem cerrada a sete pés, e nem sequer percebe que essa porta está mais que aberta há muitos anos. Atiram-se à porta com denodo verbal e voam para o outro lado sem travagem.
Vejam-se os cartazes virtuais da JSD que metem dó no seu simplismo político e ignorância. Por exemplo, este particularmente simpático para Stalin.
Nem os portugueses votaram em Stalin, nem Mário Nogueira está, nem de perto nem de longe, encafuado nas vestes de um Stalin português. Eles não percebem a diferença, só lhes interessa o epíteto. E é de um ridículo atroz dizer que o cancelamento de alguns contratos com colégios privados, — que são negócios legítimos, mas negócios, — tem alguma coisa a ver com o estalinismo. Bastavam estes excessos de linguagem para se perceber que quem fala de uma forte radicalização à direita tem toda a razão — com que então o nosso Stalin é Mário Nogueira? A linguagem e os epítetos revelam esse radicalismo. Acresce, como já disse acima, que é boa propaganda para Stalin. Stalin não “manipulava” as pessoas, matava-as.
Na ridícula imagem que a JSD tinha feito, antes da do Mário Nogueira, em que Lenine preside à coligação de esquerda com Costa no meio, também nada sabem de Lenine cuja evocação é tão despropositada que, de novo, é o anátema e não a substância que conta. São cartazes de insulto, nada mais e o resto é folclore político. Acresce que de todas as bandeiras com a foice e o martelo que podiam representar escolheram aquela que a prudência implicava não terem escolhido, uma das raras que simbolizou um acto festejado muito para além do comunismo: a bandeira soviética hasteada no Reichstag na vitória contra os nazis, com Berlim destruído em fundo. Quando começou a polémica sobre o significado ambíguo da imagem, um antigo deputado do CDS justificou-a com a seguinte frase: “se é um facto que Hitler foi derrotado no momento em que esse exército chegou a Berlim, vindo de Leste, é um reescrever da história chamar-lhe libertação ou celebrar esse dia”.
Churchill, que certamente esse deputado incluirá entre os seus heróis, explicar-lhe-ia com alguns expletivos, o que “esse dia significou”, e por que razão disse uma vez que se o Diabo resolvesse atacar Hitler, proferiria no Parlamento algumas frases simpáticas sobre o Inferno. É que Churchill não fez só o discurso de Fulton. Defendeu intransigentemente a colaboração com aquilo que o deputado do CDS chama “esse exército(…) vindo de Leste”, que foi quem num certo sentido ganhou a guerra na frente decisiva para os alemães, a de Leste.
Veja-se o caso de Rodrigues dos Santos que diz que o fascismo nasceu do marxismo e que acha que ao dizer isto descobriu alguma coisa e que incomoda muita gente. Desengana-se, não incomoda ninguém. Há nas ideias troncos comuns e derivações e, no caso do marxismo e do fascismo, genealogias, semelhanças e diferenças que são das coisas mais estudadas pela historiografia contemporânea no complexo mundo teórico e filosófico do século XIX. Já quanto ao século XX e aos movimentos que personificaram variantes políticas dessas ideias, seja o anarquismo, o anarco-sindicalismo, o sindicalismo revolucionário, o fascismo, o nacional-socialismo, o comunismo, partilham influências e acima de tudo partilham história concreta. Não é, como diz, uma verdade escondida que “pouquíssima gente” conhece, mas uma matéria abundantemente estudada, polémica no grau e na dimensão, mas consideravelmente conhecida.
Fora da teoria e das ideias, na história concreta, as coisas são muito diferentes, e é isso que estas frases bombásticas escondem. Há de facto uma coisa em comum entre comunismo e fascismo — aconteceram no mesmo tempo histórico. Na “guerra civil europeia”, fascistas e comunistas combateram-se, mas são para esta variante da “cultura” política da Internet, “duas faces da mesma moeda”. Até colaboraram, no Pacto Germano-Soviético. Mas perguntem a um comunista francês fuzilado pelos alemães, ou a um fascista francês fuzilado pelos gaullistas, se são “duas faces da mesma moeda”? Presumo que com a fúria da resposta do morto, o pelotão de fuzilamento mudará de direcção.
Historiador
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