sexta-feira, 12 de julho de 2013

POEMA DE DAVID MOURÃO FERREIRA (1927-1996)







Do Tempo ao CoraçãoE volto a murmurar    Do cântico de amor 
gerado na Suméria      às novas europutas 
Do muito que me dás ao muito que não dou 
mas que sempre conservo entre as coisas mais puras 

De uma genebra a mais num bar de Amsterdão 
a não perder o pé numa praia da Grécia 
De tantas       tantas mãos          que nos passam pelas mãos 
a tão poucas que são as que nunca se esquecem 

De ter visto o começo e o fim da Via Ápia 
De ter atravessado o muro de Berlim 
De outros muros que não aparecem no mapa 
De outros muros que só aparecem aqui 

ao barro deste céu que te modela os ombros 
ao sopro deste céu que te solta o cabelo 
ao riso deste céu que vem ao nosso encontro 
quando sabe que nós não precisamos dele 

Da pertinaz presença          E da longevidade 
do corvo         do chacal            do louco          do eunuco 
ao rouxinol que morre em plena madrugada 
à rosa que adormece em caules de um minuto 

Do que foi noutro tempo a saúde no campo 
à lepra que nos rói a paisagem bucólica 
Do tempo          ao coração minado pelo cancro 
Dos rins             ao infinito incubado na cólera 

Do tempo ao coração            mas com pausa na pele 
como «Roma by night» entre dois aviões 
como passar o Verão numa vogal aberta 
como dizer que não         que já não somos dois 

Dos rins ao infinito       A este       que não outro 
Ao que rola dos rins    Ao que vai rebentar-te 
na câmara blindada e nocturna do útero 
E nos transfere o fim para um pouco mais tarde 

Da curva de entretanto       à entrada do poço 
De soletrar em mim       a ler       nas tuas mãos 
como é rápido       e lento      e recto       e sinuoso 
o percurso que vai do tempo ao coração. 

David Mourão-Ferreira, in “Obra Poética” 

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