Eduardo Lourenço, in NET:
A Mentalidade Portuguesa
É pena que Freud não nos tenha conhecido: teria descoberto, ao menos, no campo da pura vontade de aparecer, um povo em que se exemplifica o sublime triunfo do princípio do prazer sobre o princípio da realidade. Talvez não ficasse admirado se conhecesse, mesmo pela rama, uma das menos repressivas educações infantis que existem e tanto entusiasmaram Sartre quando observou a análoga, a vizinha Espanha. Adulação permanente e espectacular da criança-rei (sobretudo o macho), porta aberta para as suas pulsões narcisistas e exibicionistas, ausência de perspectiva social positiva, salvo a que prolonga a afirmação egoísta de si, tais são os mais comuns reflexos da educação portuguesa, defesa natural de mães frustradas nela pelo genérico absentismo e irresponsabilidade paternos.
A contrapartida desta realeza que converte cada adolescente (macho) na famosa espécie dos «matões» cara ao nosso Épico, traduz-se numa indefinição do espaço humano que nada limita e define senão a vontade oposta, e dá origem a uma sociedade que, sem paradoxo algum, suscita e impõe uma violência estatal que, exteriormente, equilibra essa fictícia realeza individual. Nada há na educação portuguesa — sobretudo hoje que a também «exterior» mas efectiva pressão ética de ordem religiosa naufrago — que contribua para a existência de um comportamento tanto quanto possível autodeterminado e equivalente, salvo o que nesse sentido existe na afeição maternal.
A sociedade portuguesa não é a única que vive sob o modo de uma quase total exterioridade e em obediência ao pendor irresistível de ocupar nela o lugar que implica o mínimo de resistência e o máximo de promoção social segundo a norma do parecer, mas é certamente uma das mais perfeitas no género. E será decerto pouco provável esperar, antes de longos anos, da almejada sociedade socialista a construir, uma mudança consciente naquilo que não é da ordem do político, embora o implique, mas da ordem obscura e de trama quase orgânica da mentalidade. Mas se essa mudança não é uma utopia, só pode esperar-se da transformação da mentalidade económica e social coadjuvada com uma prática pedagógica digna de uma sociedade anti-individualista, antiegoísta, como, em princípio, uma sociedade socialista deve ser.
Eduardo Lourenço, in 'O Labirinto da Saudade (1978)'
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