sexta-feira, 28 de setembro de 2018

In observador.pt

O mito de Gonçalo M. Tavares

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Só com um verdadeiro talento é possível fazer literatura da linguagem anti-literária. O autor do novo "A mulher-sem-cabeça e o Homem-do-mau-olhado" conseguiu criar o estilo a partir da falta dele.
© Diana Quintela / Global Imagens
Autor
  • Carlos Maria Bobone
Título: “A mulher-sem-cabeça e o Homem-do-mau-olhado”
Autor: Gonçalo M. Tavares
Editora: Bertrand
Páginas: 143
Sobre a obra de Gonçalo M. Tavares, já era importante e continua a ser: realçar o modo como a lógica é usada para criar uma literatura do absurdo. Seja por jogos de palavras, seja pelo uso de um pormenor como característica de um todo, seja pelo aproveitamento dos sentidos possíveis e inesperados das premissas, o romance de Gonçalo M. Tavares denuncia um problema de linguagem que se torna um problema de raciocínio: a lógica opera, não a partir de realidades, mas de símbolos, da palavra cadeira e não da realidade que a palavra nomeia. Ora, o símbolo não só é uma representação imperfeita, como tem realidade própria, independente daquilo que representa. A palavra tem um som, uma definição gramatical, uma posição sintática, que a coisa representada não tem. Na lógica estão, assim, misturados significados imperfeitos e significados abusivos, que Gonçalo M. Tavares permanentemente descortina e baralha.
Ora, este método é importante, não só por marcar a posição de Gonçalo M. Tavares diante da realidade, mas também por ter implicações no seu próprio romance. A lógica de conclusão absurda influencia, além da ideia fundamental dos romances, as personagens, o estilo e (menos) o enredo. A força da lógica torna passivas as personagens, torna-as autómatos obedientes aos desmandos do raciocínio. Falta-lhes, em suma, uma característica humana que passa por resistir à lógica quando ela contraria os nossos interesses. Aquilo que é identificado pelo autor no plano fundamental – a lógica pode dar conclusões contrárias e absurdas – não é cumprido no que toca às personagens – o nexo entre lógica e acção é imediato, se o raciocínio dita, a personagem obedece. Este apelo da lógica dá também à linguagem uma pátina lacónica, jansenista, própria da sobriedade matemática. Só com um verdadeiro talento é possível fazer literatura da linguagem anti-literária; só com uma invulgar segurança é possível criar um estilo a partir da linguagem mais vulgar, sem recurso a tinetas linguísticas próprias; Gonçalo M. Tavares conseguiu criar o estilo a partir da falta dele. E se isto por um lado impressiona, por outro pode criar um problema.
A admiração por um estilo deve ser dada, mais do que pela mera existência de uma personalidade, pela grandeza dessa personalidade. Isto é, se um escritor usa sempre metáforas piscícolas, tem um estilo muito definido. Não consegue, porém, ser um bom estilo pela quantidade de coisas que deixa de fora. Um estilo que se priva de algo sem mais razão do que a de criar personalidade é um estilo que é sempre mais pequeno do que aquilo que o mundo propicia. Por outro lado, uma personalidade que absorve tudo depressa se torna incaracterística.
Note-se que este é um problema essencialmente moderno: só a partir do momento em que, mais do que a Verdade em geral, o pensador ou o escritor procura a verdade sobre si; só a partir do momento em que a personalidade passa a interessar mais do que uma ideia de verdade; só a partir do momento em que o estilo próprio ganha importância sobre uma ideia de literatura abstractamente considerada; só a partir do momento em que a originalidade passou a ser santo-e-senha da criação artística é que a ideia de ter uma persona literária vincada ganhou expressão.

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