terça-feira, 8 de abril de 2014

LITERATURA PORTUGUESA

A brilhante entrada de GARRETT(1799-1854), no Vale de Santarém, no capítulo X de "Viagens na minha Terra", quando introduz a "Novela de Joaninha". Uma página brilhante do nosso ROMANTISMO, em belíssima Prosa-Poética!

"O VALE DE SANTARÉM

O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela Natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de tons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Eden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.
À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos; a madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meia-aberta de uma habitação antiga mas não delapidada – com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa: parece mais ornada e também mais antiga que o reste do edifício, que todavia mal se vê...
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom goste e a fortuna de morar ali?
Parei e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como um feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás... Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino... era completo o romance.
Como há-de ser belo ver pôr o sol daquela janela!...
E ouvir cantar os rouxinóis!
E ver raiar uma alvorada de Maio !...
Se haverá ali quem aproveite a deliciosa janela?... quem apre­cie e saiba gozar todo o prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe andavam esvoaçando em torno?
Se for homem é poeta; se é mulher está namorada.
São os dois entes mais parecidos da Natureza, o poeta e a mulher namorada; vêem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala.
Na maior paixão, no mais acrisolado afecto do homem que não é poeta, entra sempre o seu canto de vil prosa humana: é liga sem que se não lavra o mais fino do seu ouro. A mulher não; a mulher apaixonada deveras sublima-se, idealiza-se logo, toda ela é poesia, e não há dor fisica, interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positive da existência prosaica.
Estava nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir.
Era ao pé da dita janela!
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos um desafio tão regular em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se dei­xou cair na água de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que faltava para completar o romance?"(...)

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