sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Umberto ECo

De Umberto Eco, in O Citador:
"Os Vários Tipos de Leitor
Consumo, sucesso, prazer da leitura representam uma rede de fenómenos não facilmente distinguíveis entre si. O que nos interessa observar aqui é que eles não constituem alternativa a experimentalismo, mas já constituirão alternativa a vanguarda.
Queria antes do mais pôr em evidência alguns pontos que, pelo facto de serem óbvios, se arriscam a surgir como paradoxais:
1
Todo o artista aspira a ser lido. Não há correspondência privada de nenhum artista que consideremos «experimental» (de Joyce a Montale) que não demonstre como esse autor, mesmo que soubesse que ia contra o horizonte de expectativas do próprio leitor comum e atual, aspirava a formar um leitor próprio futuro, capaz de o entender e de o apreciar, sinal de que estava a orquestrar a sua obra como sistema de instruções para um Leitor Modelo que fosse capaz de o perceber, de o apreciar e de o amar. Não existe autor que deseje ser ilegível ou inalcançável. Quando muito, como Joyce, aspira a educar um «ideal reader affected by an ideal insomnia», mas espera com todas as forças e age com toda a habilidade para que este leitor possa um dia existir empiricamente.
2
Todo o texto aspira a fornecer o prazer de uma sua leitura apropriada. O narrador de feuilleton quererá um leitor que saiba suspirar e lacrimejar, Robbe-Grillet quererá um leitor capaz de saborear o romance futuro, ambos querem alguém a quem «agrade» ler (ou olhar, ou escutar) o seu produto.
3
Parece que alguns autores de narratividade pura se desinteressam do estilo, aspirando a um leitor que aprecie apenas as histórias que eles contam. Poder-se-ia aqui distinguir entre aspiração ao prazer do enunciado e ao prazer do ato da enunciação. Ou melhor, em termos mais clássicos, entre prazer do quê e prazer do como. O mesmo é dizer entre prazer pelo Mundo Possível desenhado pela história que o texto conta ou prazer pela estratégia do conto. Mas eu não veria esta distinção como uma simples distinção, comum à estética tradicional, entre prazer pela forma ou prazer pelo conteúdo. A moderna narratologia diz-nos que uma história, independentemente do sistema semiótico em que assenta, pode ter uma forma própria e não há razão para que não se possa imaginar um autor que preveja no seu Leitor Modelo o prazer produzido pela perceção de um mundo possível bem organizado.
4
Toda a obra se propõe pelo menos dois tipos de leitor. O primeiro é a vítima designada pelas próprias estratégias enunciativas, o segundo é o leitor crítico que frui o modo como foi levado a ser vítima designada. Exemplo típico — mas não único — desta condição da leitura é o romance policial, que prevê sempre um leitor de primeiro nível e um leitor de segundo nível. O leitor de segundo nível deve fruir não a história contada mas o modo como a história foi contada. Toda a obra de arte, que não de artesanato, dirige ao leitor a mesma pergunta. Não se consideram aqui os casos de obras mais complexas em que se requerem e prefiguram leitores de terceiro, quarto ou vigésimo nível. Assim, um critério estético aceitável e não dissonante em relação aos princípios da estética moderna será o de distinguir entre obras que visam principalmente o prazer do leitor de primeiro nível e obras que visam o prazer dos leitores de nível x.
As primeiras poderão ser definidas como obras «gastronómicas», as segundas como obras com finalidade estética.
Umberto Eco, in 'Os Espelhos e outros ensaios - O Texto, o Prazer, o Consumo'

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