sábado, 20 de fevereiro de 2016

Uma das "CARAS CHAPADAS" da DIREITA portuguesa


publicação de Rui Vieira Nery.
1 h ·



Sousa Lara, a cara e o crânio da nossa direitinha.



Rui Vieira Nery
Ontem às 18:27 ·



Não fiquei nem surpreendido nem especialmente incomodado, justamente porque as minhas expectativas na matéria eram desde há muito tempo as mais baixas, com a condecoração atribuída por Aníbal Cavaco Silva a António de Sousa Lara.

De facto, a lógica das condecorações de Cavaco Silva, por detrás da sua superfície aparentemente caótica, não é difícil de caracterizar, com algum esforço analítico. Corresponde, se quisermos, a um desenho simples: ao centro um núcleo duro de cidadãos beneméritos tão incontornáveis e incontestáveis que nenhum eventual ocupante do cargo, fosse ele o Candidato Vieira ou o Tino de Rãs, poderia deixar de homenagear, lado a lado com uma massa cinzenta de pessoas de bem mais ou menos anónimas, mesmo que muitas vezes sem nenhuma relevância especial na vida profissional, que por vezes terão por certo sido as primeiras a ficar surpreendidas com o destaque dado à sua diligência honesta; num dos extremos da imagem, as ausências óbvias, correspondentes a todos os ódios de estimação e ajustes de contas pessoais que Cavaco foi assentando com azedume na sua agenda, à constante revelia de qualquer critério objectivo de mérito na perspectiva do interesse nacional; no outro extremo, a respectiva contraimagem, ou seja, uma lista interminável de cumplicidades político-partidárias, de pequenos serviços a pagar a fiéis serventuários ou simplesmente das simpatias culturais idiossincráticas da Primeira-Dama – veja-se, como exemplo particularmente caricato, a Grã-Cruz da Ordem de Mérito Empresarial atribuída a Zeinal Bava em 2014, pouco antes do descalabro financeiro que já então se anunciava para a PT.

Nesta óptica, o pobre Sousa Lara – com a sua absoluta irrelevância no panorama da Historiografia portuguesa (vejam-se as suas obras seminais sobre "As Ascendências Reais de S. A. R. a Sr.ª D. Isabel de Herédia, Duquesa de Bragança” e sobre as linhagens dos “Moreiras Pessanhas, de Canavezes” ou dos "Albuquerques, de Maceira Dão, Mangualde", entre outras pérolas genealógicas, todas elas decisivas, como se imaginará, para a reflexão contemporânea sobre a História Pátria…) e com o seu desempenho indetectável de funções tão significativas como as de “Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário da Ordem Soberana e Militar de Malta em Cabo Verde e Cônsul-Geral Honorário do Lesoto” (consulte-se o utilíssimo verbete da Wikipedia, manifestamente redigido pelo próprio) – não destoaria demasiado de tantos mais agraciados que lá foram marcando o ponto ao longo de algumas décadas de obscuro serviço académico.

Sucede que o momento isolado de glória da exposição pública do contemplado foi, sem qualquer dúvida, não propriamente a sua breve e inconsequente passagem pelo cargo de Subsecretário de Estado da Cultura, durante o consulado de Santana Lopes na pasta, mas o facto de, nessas funções, ter decidido em 1992 vetar o nome de José Saramago como candidato português ao Prémio Europeu de Literatura, invocando o carácter supostamente ofensivo do recém-publicado Evangelho Segundo Jesus Cristo, obra que, em seu entender, teria atacado “princípios que têm a ver com o património religioso dos portugueses”. Tratava-se claramente de uma decisão de uma arbitrariedade grosseira, em manifesta violação do princípio constitucional da separação entre a Igreja e o Estado, e que, além do mais, traduzia uma visão ultramontana que nem sequer correspondia à postura oficial da Igreja Portuguesa sobre a matéria. Mas assim Sousa Lara se imortalizou pelo ridículo nas notas de rodapé dos futuros manuais de História da Literatura Portuguesa, um pouco como o pobre Herr Platz, Conselheiro Municipal de Leipzig, no célebre comentário escrito em que se lamentou pelo facto de a contratação de Bach para o cargo de Kantor da cidade de Leipzig ter recaído num “medíocre”. Enfim, cada um entra na História como pode!

Na falta de qualquer outra fundamentação de visibilidade comparável, tem de se entender, por conseguinte, que é precisamente este gesto que Cavaco Silva, na sua contabilidade longamente ruminada de ódios velhos que não cansam, decidiu homenagear vinte e dois anos depois, associando-se de forma ostensiva – se por acaso houvesse ainda quaisquer dúvidas sobre a matéria – a este atentado censório primário às liberdades de expressão e de criação. Mais uma vez, nada de particularmente surpreendente no mesmo Presidente que em 2014 tinha aceitado inaugurar em Pequim uma exposição de Arte Portuguesa que acabara de ver algumas das suas obras retiradas e o catálogo apreendido pelas autoridades chinesas.

Mais preocupante ainda é contudo a explicação que o condecorado ainda hoje entende dever dar quando confrontado com a decisão indigna agora recompensada: "Um Governo tem uma conotação ideológica, não tem que agradar a toda a gente, é um Governo da maioria contra a minoria em última análise. Toma medidas polémicas que democraticamente sufragadas têm de ser aceites". E preocupante porque é a expressão brutal, sem quaisquer rodeios, de uma concepção totalitária incompatível com o exercício da Democracia, segundo a qual a legitimidade eleitoral – sempre conjuntural, por sinal, num regime democrático – autorizaria a supressão discricionária dos direitos, garantias e liberdades constitucionais pelo governo eleito. Algures em Budapeste, se por acaso lhe chegaram ecos do sucedido, o Senhor Orban terá ficado feliz pela solidariedade.

Claro que Sousa Lara é, neste contexto, um personagem tão insignificante como sempre foi no panorama cultural português. Depois destes três minutos de exposição mediática voltará a dedicar-se a traçar as linhagens dos interessados até aos reis visigodos, a edificar pelo país réplicas da “cruz Gloriosa de Dozulé” para evitar o “Apocalipse eminente”, ou a assistir fascinado aos exorcismos medievais do seu reverendo filho, Padre Duarte do mesmo nome – quem sabe se sonhando com a restauração das boas tradições portuguesas da queima simultânea dos livros heréticos e dos seus autores. Mas Cavaco Silva, o Presidente cessante, acaba o seu mandato com mais uma demonstração clara do que foi sempre a sua profunda incompreensão da natureza do regime democrático. Que os portugueses tenham repetidamente eleito este homem para os mais altos cargos do Estado é um sintoma trágico de um legado ideológico que quarenta anos de Democracia não foram, manifestamente, capazes de superar.

E isso é que é realmente grave.

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