sábado, 19 de outubro de 2013

Crónica de Vitor Malheiros no jornal "Público"-in Net




















José Vitor Malheiros
crónica Público
29.01.2013

"Dívida! MÁ! MÁ!!! Dívida PFFFF! MÁ dívida, MÁ!!"

Deve-se dizer isto várias vezes com ar de grande nojo e repulsa, esfregando a dívida no focinho do cão e agitando-a de forma irritante de forma que ele associe para sempre a dívida a algo profundamente odioso. Não deixe o cão morder a dívida para que a frustração do animal aumente a sua agressividade. Ao fim de algumas semanas o efeito deve ser visível.

"Financiamento! BOM! BOM! Oh, financiamento lindo! BONITO! BONITO! Olha o regresso aos mercados, tão lindo!! BONITO! BONITO!" O processo deve ser idêntico ao anterior mas simétrico. Enquanto se mostra o financiamento, deve-se acarinhar o cão e mostrar uma intensa alegria. Deixe o cão brincar um pouco com o regresso aos mercados enquanto lhe coça a barriga e lhe acaricia a cabeça atrás das orelhas. Faça festinhas no regresso aos mercados e repita "AMIGO! AMIGO!". Durante a brincadeira, dê uns biscoitos ao cão.

É assim que o Governo, os partidos da maioria, os media que repetem o que estes dizem (o que significa praticamente toda a televisão e a esmagadora maioria da restante imprensa) e uma parte considerável do PS nos têm tratado - e a estratégia tem resultado. Endividamento é mau! Regresso aos mercados é bom! E nós abanamos a cauda, sem perceber bem porquê e repetimos o mantra. Mas, se pararmos para pensar um bocadinho, constatamos que este maravilhoso "regresso aos mercados", que este vitorioso "acesso ao financiamento" não é senão mais um pedido de empréstimo... o que vai necessariamente aumentar o endividamento. E, o que é mais preocupante, que vai provavelmente substituir dívida antiga, a juro mais baixo, por dívida actual, a juro mais alto.

Qual é a vantagem então deste "regresso aos mercados" e por que é que tanta gente embandeira em arco? A vantagem é, antes de mais, uma vitória de propaganda. Seria uma excelente notícia se os mercados, apesar da sua sacanice intrínseca e do seu conhecido disfuncionamento, considerassem que Portugal oferecia condições de segurança para fazer investimentos. Isso quereria dizer que se esperava que a economia portuguesa tivesse um crescimento espectacular e isso seria bom. Mas, na realidade, nada permite alimentar a ideia de que os mercados pensem isto. O "regresso aos mercados" foi possível, como sabemos, porque o BCE garantiu em última instância a dívida contraída e, apesar disso, vamos ter de pagar por este maravilhoso regresso aos mercados juros superiores aos que nos cobra o maléfico FMI. Ou seja: os mercados desconfiam. Em teoria, é evidente que é melhor poder pedir dinheiro emprestado a várias entidades do que a uma só. Se o mercado funcionasse, isso quereria dizer que poderíamos regatear e obter melhores condições nos empréstimos. Mas como "os mercados" sabem que precisamos de ir "aos mercados" para fingir que está tudo bem, só conseguimos comprar dinheiro mais caro.

O que o Governo conseguiu fazer com o regresso aos mercados foi empurrar a dívida para a frente com a barriga (sim, aquilo que acusa o governo Sócrates e o PS em geral de ter feito) e espera poder fazê-lo ainda mais vendendo dívida a mais longo prazo nas futuras emissões. Trata-se - como uma grande parte do jogo da finança nos últimos anos - de uma espécie de esquema piramidal: contrair dívida futura para pagar dívida de hoje, ficar a dever cada vez mais e esperar um milagre um dia para poder pagar tudo. O regresso aos mercados é uma boa notícia para o Governo, mas apenas porque lhe permite realizar o seu programa ideológico: eternizar o programa de "austeridade", de "ajustamento", de empobrecimento, de escravização da população portuguesa em favor dos credores. A verdade insofismável é que devemos cada vez mais, a nossa economia está cada vez mais enfraquecida, as pessoas cada vez mais pobres, a sociedade cada vez mais desigual.

O regresso aos mercados também permite aos bancos a mesma fuga para a frente - contrair dívida a pagar cada vez mais tarde e usar o crédito caro para escravizar mais umas quantas empresas e acentuar o seu carácter rentista. Claro que, pelo caminho, é possível que umas quantas empresas consigam financiamento necessário que até agora lhes estava vedado - e isso é bom. Mas é difícil ver nesta operação vantagens para a população em geral.

E isto é uma das conclusões evidentes de toda esta salgalhada em que nos meteram. Governo e partidos do Governo e media continuam a falar destas operações como se fossem boas para "o país" e para "os portugueses", escamoteando que os interesses dos bancos ou dos patrões não são de forma alguma os mesmos dos trabalhadores e da população em geral. Votado ao ostracismo o conceito de luta de classes, apenas mencionado com rubor, os políticos persistem em esconder o facto insofismável que existem interesses opostos nas diferentes classes - como a crescente desigualdade criada pela crise mostra à evidência. O desemprego crescente que afecta uma grande parte da população tem como contrapartida o aumento da venda de Lamborghinis noutra camada restrita da população. O regresso aos mercados não é igual para todos.

JVM

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