Um desenho para saber mais sobre a Basílica dos Mártires que o terramoto destruiu
LUCINDA CANELAS
02/06/2016 - 08:25
É agora apresentado em Lisboa um estudo de Vieira Lusitano para o tecto de uma igreja do Chiado arrasada em 1755. O desenho é conhecido, mas não se sabia onde estava há décadas.
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É um desenho em que D. Afonso Henriques aparece ajoelhado aos pés da Virgem no cumprimento de um voto que lhe fizera pouco antes da conquista de Lisboa aos mouros. A composição desta sanguínea, um estudo feito numa espécie de giz avermelhado, acabaria por ser pintada no tecto da Basílica de Nossa Senhora dos Mártires, no Chiado, a mando de D. João V, integrada numas obras de reconstrução que só ficaram prontas em 1750, cinco anos antes do terramoto que haveria de a destruir por completo.
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Desaparecido durante décadas, este desenho de Francisco de Matos Vieira (1699-1783), conhecido como Vieira Lusitano, foi recentemente localizado pelo antiquário António Pereira da Trindade, o seu actual dono, e é apresentado esta quinta-feira, às 18h, numa conferência de imprensa na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL).
Com 63X37 cm, este estudo é um dos vários que o pintor régio terá feito durante a preparação da obra, obviamente sujeita à aprovação do monarca. Desses conhecem-se apenas dois completos, embora haja vários fragmentos em diversas colecções, explica ao PÚBLICO Luísa Arruda, professora da FBAUL e autora de uma tese de doutoramento sobre o desenho em Vieira Lusitano (Francisco Vieira Lusitano: Uma época de desenho, 2000). “É uma peça notável, mas não desconhecida”, diz a historiadora, referindo-se ao segundo estudo completo para o mesmo tecto, que pertencia às colecções de Frei Manuel do Cenáculo e que, por isso, faz hoje parte do acervo do Museu de Évora. Além deste, lembra, há ainda uma cópia do desenho que vai ser agora apresentado feita pelo olisipógrafo Júlio de Castilho, em 1887, consultável no site da Biblioteca Nacional de Portugal.
“O tecto dos Mártires era uma obra importante pela sua carga simbólica, pelo facto de ser a encomenda de um rei particularmente devoto”, acrescenta Luísa Arruda, explicando que uma composição deste género é por natureza complexa, com um grande número de figuras, em que o artista tem de levar em conta a perspectiva do observador, que as olha sempre de longe e obrigado a inclinar a cabeça para trás. “É uma obra de enorme responsabilidade para um artista, sobretudo porque é integrada numa igreja de relevo”, acarinhada por um rei que se habituou a fazer da religião – e da sua relação com Roma – um instrumento de poder e de diplomacia.
A carga simbólica deve-se, em parte, à história da própria igreja. Uma história que explica por que razão estava D. Afonso Henriques no centro do tecto que Vieira Lusitano pintou.
A promessa do rei
A Basílica dos Mártires começou por ser uma pequena ermida, construída num terreno fora das muralhas, onde, segundo a tradição, se prestava culto à imagem de Nossa Senhora trazida pelos cruzados ingleses que se juntaram a D. Afonso Henriques na conquista de Lisboa. Os cavaleiros, cuja armada se dirigia para a Terra Santa, fundearam no Tejo no final de Junho de 1147 e, nos quatro meses seguintes, lutaram ao lado dos soldados do rei para libertar a capital dos muçulmanos. Muitos morreram – a esses o povo passou a chamar “mártires” - e acabaram sepultados no local onde o monarca haveria de mandar construir a ermida, logo a 21 de Novembro desse ano. D. Afonso Henriques cumpria, assim, a promessa de agradecer à Virgem a vitória.
Sempre com um lugar de destaque na vida religiosa de Lisboa devido ao seu grande simbolismo, a Igreja de Nossa Senhora dos Mártires acabaria elevada ao estatuto de basílica no final do século XIV e sujeita a várias campanhas de obras antes de ser arrasada pelo terramoto de 1755. Foi numa destas fases de ampliação e melhorias, que decorreu entre 1746 e 1750 por ordem de D. João V que Vieira Lusitano foi encarregue de pintar o tecto do edifício, à data transformado num grande templo barroco. Pós-terramoto, a reconstrução pombalina voltou a reerguê-la, desta vez com um tecto de Pedro Alexandrino de Carvalho.
“Vieira Lusitano é um grande pintor e um grande desenhador do século XVIII e numa altura em que Portugal não tinha ainda uma academia de desenho”, diz Luísa Arruda, explicando que o pintor tem um percurso que era raríssimo na época, se não mesmo inédito. Tendo feito parte da embaixada de D. João V ao Papa, o pintor acabaria a estudar em Roma, “o centro mais importante da arte no seu tempo, o equivalente à Paris e à Nova Iorque de outras épocas”, com discípulos de Carlo Maratti (1625-1713), um dos grandes mestres do barroco e um dos artistas italianos mais importantes deste período, depois da morte do incontestável Bernini, em 1680. “A sua formação em Roma dá-lhe uma capacidade invulgar para representar o corpo humano, para compor de um modo canónico, académico. Ele sabe desenhar o nu como poucos, não se limita a copiar estampas. Quando está em Roma ele aprende verdadeiramente e essa aprendizagem permite-lhe impor uma marca autoral à sua pintura, que tem características europeias.”
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