sexta-feira, 11 de agosto de 2017

SOBRE Martin Luther King




Há 50 anos ele teve um discurso com um final perfeito







KATHLEEN GOMES, WASHINGTON E CULLMAN (ALABAMA)


Há 50 anos, Martin Luther King fez um discurso que ajudou a mudar a América


A maior parte dos americanos ouviu Martin Luther King discursar pela primeira vez há 50 anos em Washington, na maior manifestação em defesa da igualdade racial nos Estados Unidos. Menos de três meses depois, o Presidente Kennedy morria, assassinado a tiro. Esses dois momentos mudaram para sempre as relações raciais na América. Fomos até ao Sul, onde o racismo foi mais virulento, ver como é que uma comunidade branca elegeu um negro como James Fields, ainda antes de a América votar em Barack Obama








Quem hoje sobe os degraus do Lincoln Memorial, em Washington, pode ver onde é que Martin Luther King estava quando proclamou "I have a dream...". Uma inscrição no granito marca o lugar onde ele repetiu essas palavras uma e outra vez, como num estado de transe, a 28 de Agosto de 1963.


Mas o mais icónico discurso de King quase não aconteceu. King e os seus assessores trabalharam no texto durante uma semana e o reverendo continuou a refazer o discurso até ao último minuto, eliminando palavras e introduzindo novas frases. Na véspera do discurso, o rascunho não continha qualquer referência a um "sonho".








A maior parte dos americanos ouviu Martin Luther King discursar pela primeira vez na Marcha em Washington, a maior manifestação em defesa da igualdade racial na história dos Estados Unidos. Duzentas e cinquenta mil pessoas assistiram ao vivo, diante do Lincoln Memorial. Milhões viram-no na televisão ou ouviram-no na rádio. As três televisões que existiam na altura cobriram o discurso ao vivo, o que nunca tinha acontecido. Toda a gente esperava que o seu discurso - que só aconteceu no final, depois de uma autêntica procissão de oradores e cantores - fosse o momento decisivo da marcha. Ele lembrava que a América estava a negar direitos básicos aos seus cidadãos negros.





Nos tribunais por todo o Sul, havia uma Bíblia ‘negra’ e uma Bíblia ‘branca’ para as testemunhas fazerem o seu juramento judicial — até a palavra de Deus estava segregada.

Isabel Wilkerson, jornalista e escritora






Mas a questão central do seu discurso era a ideia de reconciliação racial numa altura em que muitos activistas negros começavam a questionar se a não-violência pregada por King estava a ser eficaz contra um racismo profundo. Muitos deles perguntavam-se até quando é que poderiam participar num movimento ancorado no princípio da resistência não-violenta quando enfrentavam agressões e brutalidade todos os dias em lugares como Birmingham, Alabama, ou Jackson, Mississípi, ou passavam longas temporadas na prisão pelo simples facto de participarem em manifestações. No Sul americano, que lutara na Guerra Civil um século antes em defesa da escravatura e perdera, a segregação racial continuava a ser lei em 1963.


1963, um ano perigoso para se ser afro-americano








"1963 ainda era um ano perigoso para se ser afro-americano no Sul", nota Isabel Wilkerson, que já foi jornalista e é autora de The Warmth of Other Suns: The Epic Story of America"s Great Migration, (O Calor de Outros Sóis: A História Épica da Grande Migração Americana), um bestseller de 2010 sobre a migração de uma larga proporção de negros americanos do Sul para o Norte do país no período das duas guerras mundiais. "Eles viviam num mundo que é difícil as pessoas imaginarem hoje em dia. Um mundo em que era ilegal um negro e um branco jogarem damas juntos. Um mundo em que, durante boa parte do século XX, de quatro em quatro dias um afro-americano era linchado em público, quase sempre por razões infundadas", diz Wilkerson à Revista 2. "Os afro-americanos tinham de sair do passeio quando uma pessoa branca se aproximava. Nos tribunais por todo o Sul, havia uma Bíblia "negra" e uma Bíblia "branca" para as testemunhas fazerem o seu juramento judicial - até a palavra de Deus estava segregada. Havia escadarias diferentes para negros e brancos quando tinham de usar o mesmo espaço. Tudo o que se possa imaginar que podia ser separado estava separado. Muitas pessoas perderam a vida ao tentar romper esse sistema de castas. Em 1964, um ano após a Marcha em Washington, três jovens activistas dos direitos civis, dois deles brancos e um negro, foram raptados no Mississípi quando tentavam inscrever negros no recenseamento eleitoral e foram assassinados. Os seus corpos foram encontrados ao fim de 44 dias. É quase como se houvesse uma guerra não-declarada nesta região do país. É importante reconhecer que isto não aconteceu há tanto tempo quanto isso; isto aconteceu durante o tempo de vida de muitos americanos que ainda estão vivos hoje. Isto não é mais do que um abrir e fechar de olhos no longo arco da história."


Martin Luther King procurava sempre um final perfeito para os seus discursos. Uma das teorias sobre isso é que, como ele sofria constantes ameaças à sua vida, insistia num tom profético quando estava a terminar um discurso, como se estivesse a dizer as suas últimas palavras. Na véspera da Marcha em Washington, ele ponderou se deveria falar do "sonho" e se este seria um final emotivo para o seu discurso. Há meses que ele vinha falando do seu "sonho" em discursos por todo o país, defendendo a sua visão de uma coexistência racial harmoniosa. King pediu a opinião de dois dos seus assessores. Um deles, Wyatt Tee Walker, aconselhou-o a não mencionar a frase "I have a dream". Era demasiado cliché. King já a tinha usado demasiadas vezes, disse. O segundo assessor, Andrew Young, concordou. King não disse nada. Mas nessa noite alguém o ouviu repetir as mesmas palavras uma e outra vez no seu quarto de hotel, depois de toda a gente se deitar: "Eu tenho um sonho... Eu tenho um sonho... Eu tenho um sonho..."





O discurso de King, com a sua mensagem de não-violência, continha uma mensagem de esperança, de optimismo. Ele teve a capacidade para levar as pessoas a partilhar e participar na sua visão. Provavelmente, ele livrou-nos de mais uma Guerra Civil.

John Lewis, congressista afro-americano






Como a maior parte dos americanos que estavam a seguir a Marcha em Washington através da televisão, o Presidente John F. Kennedy ouviu um discurso integral de Martin Luther King pela primeira vez nesse dia. "Ele é danado de bom", terá comentado com um dos seus assistentes na Casa Branca, de acordo com o mais respeitado livro sobre esse período, Parting the Waters: America in the King Years 1954-1963 (A Separação das Águas: A América nos Anos de King 1954-1963, numa tradução literal) um dos três volumes biográficos sobre King escritos por Taylor Branch.


Kennedy tinha feito saber que era contra a realização da Marcha. O Presidente democrata tinha acabado de introduzir no Congresso uma proposta de lei para abolir a discriminação racial e, em Junho, num encontro com os líderes do movimento dos direitos civis, incluindo Martin Luther King, ele indicou que a marcha poderia comprometer o futuro dessa legislação. John Lewis, que foi o mais jovem dos oradores da marcha e esteve presente nesse encontro, lembra-se de Kennedy dizer algo como: "Se vocês trouxerem todas estas pessoas até Washington, haverá violência e caos e nunca conseguiremos que o Congresso aprove a lei dos direitos civis", comenta agora à Revista 2.








Mas quando a marcha chegou ao fim, Kennedy convidou os oradores para um encontro na Casa Branca. "Ele cumprimentou-nos um a um, à medida que entrámos na Sala Oval", recorda John Lewis, um congressista afro-americano que é o único dos oradores da marcha que sobrevive até hoje. "Ele estava radiante, como um pai orgulhoso por tudo ter corrido tão bem. Ele não parava de dizer: "Bom trabalho!"" Quando chegou a vez de Martin Luther King, Kennedy repetiu o refrão do seu discurso, "I have a dream", como um orador que reconhece uma boa frase.


Menos de três meses depois, a 22 de Novembro, Kennedy morreu, assassinado a tiro durante uma visita a Dallas, no Texas. Esses dois momentos - a Marcha em Washington e a inesperada morte do Presidente Kennedy -, ocorridos há 50 anos, fizeram de 1963 um ano extremamente consequente para a história dos direitos dos negros na América. A megamanifestação na capital americana trouxe a luta pelos direitos civis para um palco nacional - até então, ela tinha estado praticamente confinada ao Sul. O discurso de King, com a sua mensagem de não-violência, contribuiu para "educar e sensibilizar uma grande maioria da população americana", diz John Lewis. "Esse discurso continha uma mensagem de esperança, de optimismo. Ele teve a capacidade para levar as pessoas a partilhar e participar na sua visão. Provavelmente, ele livrou-nos de mais uma Guerra Civil."

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