sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

SOBRE SCHINDLER e a doutrina de Kant...



Sobre Schindler e a doutrina de Kant: ver artigo completo in filoescola.blogspot.pt

..."Eu quero sustentar aqui que A lista de Schindler, o filme de Steven Spielberg, pode ser visto como um poderoso argumento visual em favor de uma ética de princípios de tipo kantiano, contra éticas meramente consequencialistas, mesmo sendo uma obra que trata do nazismo que, como vimos, pareceria constituir o contra-argumento paradigmático contra éticas de princípios, e contra a ética de Kant em particular. O lugar-comum, sempre repetido, consiste em dizer que a ética kantiana é “inaplicável” em situações-limite como as mostradas abundantemente no filme, e que isso deveria levar à adoção de uma ética conseqüencial “adaptada às circunstâncias”. Vou tentar mostrar que o filme de Spielberg problematiza essa interpretação da ética kantiana como fracassada diante de situações como o nazismo, e que a reflexão fílmica que ele propõe dissolve a nítida distinção entre esses dois tipos de teoria moral moderna, em benefício de uma terceira possibilidade (pós-moderna?), que poderíamos denominar de moralidade trágica.
No início do filme, Oskar Schindler (Liam Neeson) é mostrado como um negociante pragmático que lucra, de maneira pouco escrupulosa, com a situação de penúria dos judeus. Na cena em que o trabalhador maneta insiste em cumprimentá-lo em seu escritório, Schindler se mostra irritado, adota atitudes egoístas e arrogantes. Mais adiante, uma bonita mulher, que intercede em favor de seu velho pai, só consegue ser recebida por Schindler quando se veste de maneira atraente. A cena decisiva da conscientização moral de Schindler parece ser a da evacuação do gueto de Varsóvia, por ele assistida durante um passeio a cavalo. Mas se as futuras ações de Schindler em favor dos judeus são consideradas “moralmente boas”, elas não parecem motivadas, primeiramente, pelo puro dever (“Devo tratar de aliviar as pessoas que sofrem, na medida em que dessa maneira elas sejam tratadas como fins, mediante uma máxima que sempre se pode universalizar”), nem tampouco observando-se as conseqüências delas (“Devo tratar de aliviar as pessoas que sofrem porque isso trará como consequência a felicidade do maior número”). As ações de Schindler parecem muito mais motivadas por algo como um sentimento básico de repugnância e de repulsa, não redutíveis a uma análise fria nem de princípios nem de conseqüências. O cinema possui a “linguagem” apropriada para mostrar a importância destes impactos emocionais primitivos dentro da constituição de uma consciência moral.
Os sentimentos foram excluídos por Kant, da motivação moral genuína, porque ele pensa nos sentimentos, como foi visto, no registro da busca insaciável do prazer por parte de seres humanos fracos e autobenevolentes. Mas, ao contrário, o filme de Spielberg mostra que os sentimentos podem também ser pensados no registro da pura e simples fuga da dor insuportável e que essa fuga (que não é de forma alguma busca pelo prazer, e sim uma luta pela mera sobrevivência) pode constituir motivo legítimo de ação, de um ponto de vista moral.
Utilizando a “linguagem” do cinema, Spielberg não faz afirmações pontuais ou diretas sobre Schindler, e sim o mostra vivendo, sintética e extensivamente, em vários momentos significativos. Nesta “expansividade temporal” dos conceitos-imagem, Schindler não se mostra permanentemente como pessoa moral, tal como na linguagem escrita da filosofia, onde as exigências do conceito-ideia não exibem o movimento que levaria da indiferença moral à tomada de consciência. O cinema não alcança a sua própria universalidade mediante algum tipo de “resumo conceitual”, e sim mediante a demonstração de fragmentos de uma vida, de comportamentos fluidos e frágeis. A filosofia escrita refere-se somente a um momento arbitrariamente privilegiado da experiência, furtando a fluidez da vida mediante uma idealização, o que nos induz a pensar que as posturas éticas podem ser destacadas e definidas."...




GostoMostrar mais reaçõesComentar
Partilhar

Sem comentários:

Enviar um comentário