sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

PORQUE LER, FAZ BEM...Do Livro de Vergílio Ferreira, "Manhã submersa"


Opinião

«Manhã Submersa» é um romance um pouco triste e cruel que retrata a vida de um conjunto de seminaristas oriundos de famílias pobres ou remediadas que se encontram num beco sem saída, entre uma suposta perspectiva de vida boa mas cheia de limitações em contraste com uma suposta liberdade em más condições de vida. Seminarista à força, ou privilegiado eleito a partir de um capricho de pessoas ricas e austeras, António Borrralho sofre a obrigação de uma vocação que não sente, encurralado pela mãe que sonha com uma velhice mais confortável em virtude da prometedora carreira eclesiástica do filho, e uma tutora que o escraviza na religião mesmo em períodos de férias, benemérita que faz pagar bem alto o preço de ajudar uma família que vive na miséria.

Num mosteiro onde também a austeridade impera, por meio de regras e caprichos de padres que também têm as suas obsessões, aulas de latim apimentadas por lutas entre facções criadas pelos educadores, ambientes de isolamento mas simultaneamente de criação de um rebanho dócil de seminaristas a todo o preço, geram os mais variados tipos de angústias e sentimentos negativos, atenuados em parte por algumas amizades e também por rivalidades que distraem os rapazes do ambiente deprimente em que se encontram. As atitudes de revolta, algumas mais premeditadas, outras longamente alimentadas em silêncio e depois precipitadas, são uma constante do comportamento dos seminaristas ao longo dos vários anos que António Borralho aguenta a sua estada no seminário.

O estado emergente da adolescência, as tentações da carne a que tem que fugir a todo o custo, as provocações pérfidas e degradantes de várias pessoas entre os quais os seus antigos amigos e pessoas da família da sua tutora, indiciam um desprezo ao seu estado que o mina por fora como por dentro, que a pouco e pouco leva António a consolidar uma decisão de ruptura que o colocará de volta ao seu destino desgraçado mas liberto, preferindo a crueza da realidade á hipocrisia do meio homem sem vida. Entre as dúvidas dos amigos e as suas próprias, no descobrir da existência como homem e dos prazeres e armadilhas que a vida oferece, enleado numa teia de acontecimentos que não controla e onde se sente um joguete, a longa introspecção acaba por ser um jogo de hesitações onde só um acto repentino, irreflectido e irreversível, fruto do ódio, acaba por o colocar no caminho certo do seu destino.
Excerto

(...) o peso da dor nada tem que ver com a qualidade da dor. A dor é o que se sente. Nada mais. Desisto definitivamente de me iludir com a minha força de adulto sobre o peso de uma amargura infantil. Exactamente porque toda a vida que tive sempre se me representa investida da importância que em cada momento teve. Como se eu jamais tivesse envelhecido. Exactamente porque só é fútil e ingénua a infância dos outros - quando se não é já criança.

(...) Estranho poder este da lembrança: tudo o que me ofendeu me ofende, tudo o que me sorriu sorri: mas, a um apelo de abandono, a um esquecimento «real», a bruma da distância levanta-se-me sobre tudo, acena-me à comoção que não é alegre nem triste mas apenas «comovente»... Dói-me o que sofri e «recordo», não o que sofri e «evoco».

(...) Eu vivia, de resto, agora, e cada vez mais, da minha imaginação. E foi por isso a partir de então que eu descobri a violência da realidade. Nada era como eu tinha fantasiado e não sabia porquê. Parecia-me que havia sempre outras coisas à minha volta que eu não supunha, e que essas coisas tinham sempre mais força do que eu julgava. Assim, a minha pessoa e tudo aquilo que eu escolhera para mim não tinham sobre o mais a importância que eu lhes dera. Chegado à realidade, muita coisa erguia a voz por sobre mim e me esquecia.

(...) Quando algum de nós se afastava para dentro de si próprio, logo a vigilância alarmada dos prefeitos o trazia de rastos cá para fora. Os superiores sabiam que, à pressão exterior, cada um de nós podia refugiar-se no mais fundo de si. Como sabiam também que a descoberta de nós próprios era a descoberta maravilhosa de uma força inesperada. Nenhuns sonhos se negavam ao apelo da nossa sorte, aí na nossa íntima liberdade. Por isso nos expulsavam de lá. Mas, uma vez postos na rua, havia ainda o receio de que as nossas liberdades comunicassem de uns para os outros e ficassem por isso ainda mais fortes. E assim nos obrigavam a integrar-nos numa solidariedade geométrica, ruidosa e exterior como de ladrilhos.

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