quinta-feira, 20 de outubro de 2016

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COMENTÁRIO
May way


TERESA DE SOUSA

20/10/2016 - 07:16


Uma nova tendência britânica que está a nascer do caos em que caiu o debate sobre a melhor estratégia para o "Brexit": o "Bregret". Dos arrependidos.




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1. Não é a primeira vez que Sinatra oferece a letra de uma das suas canções mais emblemáticas para sintetizar uma ideia política. Quando Gorbachov anunciou aos satélites de Leste que passariam a ser eles a escolher o seu caminho, nasceu a “doutrina Sinatra”. Agora, é a Economist que recorre à mesma canção para resumir uma nova tendência britânica que está a nascer do caos em que caiu o debate sobre a melhor estratégia para o "Brexit": o "Bregret". Dos arrependidos.

Como canta Sinatra, “Bregrets, we have a few”. Não é ainda uma “doutrina”, mas a revista britânica (e muitos outros analistas) acredita que do caos está a emergir uma outra concepção política do "Brexit", que tem na nova primeira-ministra, Theresa May, a sua principal intérprete. A revista chama-lhe “revolução conservadora”, mas talvez fosse melhor dizer “contra-revolução conservadora” para distanciá-la da outra revolução liderada por Margaret Thatcher em 1979, com a qual a actual não tem rigorosamente nada a ver. Este novo conservadorismo, muito mais nacionalista e muito menos liberal, não tem nada a ver com aquele que os seus dois antecessores alguma vez representaram. Cameron, que jogou e perdeu com uma ligeireza incompreensível, representava um neoliberalismo menos “conservador”, radicado numa elite privilegiada de amigos dos tempos de Eton ou de Oxford e assente na ortodoxia das contas públicas, na abertura dos mercados e, mais recentemente, no controlo da imigração, quando esta passou a ser a preocupação número um dos britânicos.

May não aceita nada disto. Quer um país “para todos”, despreza a elite cosmopolita, nega a tradição britânica de abertura ao mundo, defende uma política de “britanização” que chega a rondar a xenofobia. Disse-o com todas as letras no discurso com que abriu a Conferência dos Conservadores, a 5 de Outubro. Agradeceu a Cameron em meia dúzia de palavras e anunciou que agora “é preciso mudar outra vez”. É preciso governar para “milhões de cidadãos fartos de imigrantes, de elites distantes e do consenso do laissez-fair”. Foi ainda mais longe, ao prometer “abraçar um novo território do centro, a partir do qual o Governo possa agir”. Thatcher dissera que não havia essa coisa chamada sociedade, mas apenas indivíduos. Ela diz que não há cidadãos do mundo. “Se acreditam que são cidadãos do mundo, é porque são cidadãos de sítio nenhum”. Anunciou que o seu governo vai identificar as indústrias consideradas estratégicas. Deixou um aviso à independência excessiva do Banco de Inglaterra, que já tentou corrigir, depois dos protestos do seu governador, por sinal um canadiano.

2. A filosofia que inspirou os governos britânicos de Thatcher e Cameron passando por Blair, acaba de ver a sua morte anunciada. “May remete Cameron para a História, num discurso populista”, escreve o Guardian. Por vezes com laivos de esquerda. “No coração do discurso de May esteve a defesa do papel do Estado para garantir a justiça e a segurança”. Mas o lado mais preocupante desta inesperada “revolução” foram as medidas já anunciadas para os estrangeiros que trabalham no Reino Unido, com indisfarçável ressonância a UKIP. No início de Outubro, o Governo decidiu que os (muitos) académicos estrangeiros que trabalhem em equipas de consultores do Governo devem ser imediatamente afastados. O argumento é que, não sendo britânicos, podem fazer o papel de espiões. A medida está a gerar um coro de protestos. A ministra que a substituiu nos Assuntos Internos, Ambar Rudd, quer que as empresas informem sobre a percentagem de trabalhadores estrangeiros nos seus quadros. “A ocupar empregos que os britânicos podem fazer”. Rudd anunciou que vai “cair em cima” dos vistos destinados aos estudantes estrangeiros que vão estudar para as excelentes universidades britânicas, que só beneficiam com isso.

3. May faz hoje 100 dias em Downing Street. Tem pela frente uma tarefa ciclópica. Disparou a primeira salva política para dizer ao que vem, mas ninguém sabe ainda qual será a sua estratégica para o "Brexit", se é que tem uma. Só hoje os britânicos se dão conta da “impossibilidade” da separação. O Governo está entre dois fogos: as empresas que não querem perder o acesso ao Mercado Interno e as pessoas que não querem mais estrangeiros no país. Ninguém está à espera que os parceiros europeus alguma vez aceitem que possa escolher as “liberdades” que lhe dão jeito. O discurso do Governo parece dar mais valor ao fim da liberdade de circulação do que ao acesso ao mercado europeu. Foi para isto que se fez o referendo? Muita gente começa a achar que não. São os "Bregrets".

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